Txai Suruí na COP26. Foto: Kiara Worth/UNFCCC/Reprodução.

Vozes para adiar o fim do mundo

Nova série da Bodisatva narra ações eficazes de jovens brasileiros que estão mostrando ao mundo que é possível fazer diferente, e enfrentar fenômenos como a emergência climática e a desigualdade social


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Revisão: Janaína Araújo

As jovens vozes do país estão ecoando um som para mostrar ao mundo que a emergência climática e a desigualdade social devem ser olhadas de frente e enfrentadas com ações em escalas locais e internacionais. 


Uma delas pode ser ouvida no recente discurso da jovem indígena Txai Suruí, única brasileira a falar na abertura da Conferência Climática da Organização das Nações Unidas (COP26 da ONU) em Glasgow, na Escócia, que nos tocou profundamente com seu grito de socorro e também como um sopro de esperança para um mundo vivo e possível. Outras, como a de Rodrigo Belli e a de Anna Luísa Beserra, trazem soluções tecnológicas para enfrentar a questão da escassez de água potável no país. Já do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, vem Rene Silva, criador de um jornal para dar voz às comunidades, e de Lucas Lima, que fez uma impressora 3D a partir de sucata e hoje dá aulas de robótica educacional na comunidade.

Como bem nos fala Ailton Krenak, é possível  adiar o fim do mundo a partir de novas narrativas. A nova série da Bodisatva pretende divulgar algumas iniciativas e ações engajadas por jovens para enfrentar e apontar saídas para as questões climática e social. Envie sugestões de experiências para que possamos contar e divulgar mais histórias (revista@bodistava.com.br). 

Que seja de benefício!

 


A Água Camelo, de Rodrigo Belli

O Kit Água Camelo em uso. Foto: Instagram/Reprodução.

O dado é alarmante: no Brasil, atualmente, quase 35 milhões de pessoas não sabem quando vão tomar o próximo copo de água limpa (dado do SNIS, 2019). Mas alguns jovens têm utilizado seus conhecimentos para democratizar o acesso à água potável. 

É o caso de Rodrigo Belli, estudante de Design da PUC, no Rio de Janeiro, que desenvolveu um kit que permite captar, armazenar e filtrar a água. Rodrigo se sensibilizou com a situação dessas pessoas que estão desassistidas, e estudando a urbanização informal que se deu no Rio de Janeiro, entendeu que a questão da água era calamitosa na cidade.

O projeto criado por ele, o kit Água Camelo, é composto por uma mochila que suporta até 15 litros de água imprópria por vez, um filtro portátil acoplado a ela que elimina até 99,99% de todas bactérias, protozoários e partículas sólidas flutuantes na água e um suporte de parede para pendurar a mochila na residência, segundo descrição do site do projeto.

O filtro consegue barrar, por exemplo, a bactéria que causa a diarreia, a segunda maior causa de morte de crianças de zero a cinco anos. A mochila é adequada para o armazenamento porque é feita com material próprio para água e facilita o transporte porque é ergonômica. 

A distribuição do kit se dá no modelo Robin Hood (o herói inglês que tirava dos ricos para dar aos pobres), pois ela é vendida para quem tem recursos financeiros, e entregue para quem está em situação de vulnerabilidade. O valor é de R$ 500,00 e tem durabilidade de até 10 anos.

 

Em entrevista ao canal Stone House, Rodrigo afirma que seu sonho é impactar um bilhão de pessoas e se tornar o que para ele é “verdadeiramente ser um bilionário”.

Quem quiser ajudar na democratização da água, pode obter maiores informações através do site https://www.aguacamelo.com.br/.

O Aqualuz, de Anna Luísa Beserra

Aqualuz. Foto: SDW For All/Reprodução.

A jovem baiana Anna Luísa Beserra, hoje com 23 anos, criou uma forma de tratar a água com luz solar quando tinha apenas 15 anos, durante o Ensino Médio. Trata-se de um dispositivo para desinfecção de água de chuva em por meio da radiação solar.

Em entrevista ao G1, Anna conta que foi lendo Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que ela – que já tinha o sonho de se tornar cientista –, se sensibilizou pela realidade da vida na região do semiárido, e se motivou a agir para melhorar a situação do acesso à água potável, especialmente nas comunidades rurais onde há longos períodos de seca. 

Estimulada pelo Prêmio Jovem Cientista, em 2013, ano internacional de cooperação pela água, teve a ideia de criar o primeiro protótipo para tratar a água usando a luz do sol, que era completamente diferente do que é hoje. Embora não tenha ganhado o prêmio, Anna seguiu com o projeto até chegar na faculdade de Bioteconologia na UFBA. 

Como não há placa solar, é apenas a incidência de luz do sol diretamente na água que faz com que os microrganismos sejam eliminados, através da incidência de radiação solar, fazendo a desinfecção. Através de um indicador que muda de cor, a pessoa sabe quando o processo foi finalizado.

O dispositivo, que filtra até 30 litros de água por dia, dura cerca de 10 anos apenas com limpeza de água e sabão, troca do filtro natural (com o estoque de refil já fornecido), sem precisar de manutenção externa ou energia elétrica, gerando independência e acesso livre à água potável.

No Brasil já foram beneficiadas quase quatro mil pessoas. O custo unitário é de R$ 700,00, e são vendidos para empresas que estão inseridas nessas regiões e que os distribuem gratuitamente para os moradores.  

Maiores informações e como ajudar, podem ser encontradas no site https://www.sdwforall.com.br/tecnologias/aqualuz.

“Voz das Comunidades”, de Rene Silva 

Rene Silva. Foto: Renato Moura/Instagram/Reprodução.

De dentro das comunidades vem o olhar e a ação de muitos jovens, como é o caso do jornalista carioca Rene Silva que, aos 11 anos, depois de participar do jornal da escola onde estudava, criou o Voz das Comunidades, usando uma folha de papel A4 para relatar notícias acerca da comunidade onde ainda vive, o Complexo do Alemão.

A inspiração veio do avô que ele via ler jornais, programas de rádio e TV da grande mídia e se entristecer com notícias apenas de violência, sem nada que relatasse a realidade da favela, fossem as iniciativas sociais e de transformação da realidade ou mesmo as mazelas do lugar que não apenas a violência. 

No caminho da escola para casa, Rene ia se dando conta de que as histórias que ele via nesse trajeto não eram retratadas no jornal. Enquanto o esgoto a céu aberto no Leblon é destaque nos jornais, a existência de ruas esburacadas e com esgoto borbulhando dentro da favela não era destaque em nenhum jornal.

Com esse olhar, e aproveitando a iniciativa dos próprios alunos do Grêmio estudantil da escola onde estudava, que já haviam criado um jornal e uma rádio para a escola, ele criou o projeto para o jornal da comunidade. 

Foi em 2010 que o jornal alcançou destaque na mídia nacional e internacional, e desde lá vem ganhando mais e mais público, contando hoje com nove correspondentes em comunidades do Rio de Janeiro, um jornal impresso de 16 páginas com tiragem de 10.000 exemplares, um portal e um aplicativo próprio. Com mais de 400 mil seguidores, o Voz das Comunidades é um dos maiores canais de comunicação comunitária do país e Rene Silva foi reconhecido como um dos 100 negros com menos de 40 anos mais influentes pela MIPAD. 

Abrindo a página do Jornal Voz das Comunidades é possível encontrar notícias difíceis de ver nos canais abertos da grande mídia, como, por exemplo, a reportagem que informa “Águas do Rio abre vagas para contratação de moradores de favelas; veja como se candidatar”. Além da boa notícia de que a empresa que substitui a CEDAE irá beneficiar mais de 4 milhões de pessoas com acesso regular de água tratada e coleta do esgoto, também ficamos sabendo que uma das mudanças realizadas pela gestão é a contratação de mão de obra das comunidades na administração do saneamento.

A linha editorial promove uma visão humanizada da favela, e de acordo com Rene, o jornal busca a transformação através da comunicação comunitária, da reparação social, da tecnologia e do conhecimento dentro da favela que é um espaço de potência e não de carência. 

Se você quiser ler outras matérias e também apoiar, pode acessar a página do jornal ou o perfil do instagram @vozdascomunidades.

A Impressora 3D, de Lucas Lima

Lucas Lima. Foto: Shell Iniciativa Jovem/Reprodução.

O engenheiro mecânico, professor e mestre de gambiarras, como ele mesmo se autodenomina, Lucas Lima, 26 anos, morador do Complexo do Alemão, teve a ideia de fazer sua própria impressora 3D durante o curso de Engenharia Mecânica, ao fazer estágio no laboratório de cultura Maker (a cultura do fazedor, ou como ele diz, da gambiarra). 

Na época, ele até pensou em comprar uma, mas era impossível em virtude do alto custo, contou ele em entrevista ao Digital Club. Aplicando seus conhecimentos, muita pesquisa na internet e talento, Lucas começou a estudar o funcionamento dos aparelhos. Após reunir sucata eletrônica comprada de cooperativas de catadores e de ferros-velhos da região, em apenas duas semanas, a impressora estava pronta para uso. Ele gastou R$ 680,10 para fazer uma impressora que custaria R$ 15.000,00 no mercado.

Lucas a batizou de Maria, em homenagem à avó que o criou com muito sacrifício na comunidade do Complexo do Alemão. Enquanto muitas crianças viviam nas ruas em meio à violência da comunidade, Lucas ficava dentro de casa envolvido com invenções, já demonstrando sinais do cientista que carregava dentro de si.

Hoje em dia, ele atua como professor de robótica educacional na escola da comunidade, sonho que tem desde pequeno também. Na verdade, Lucas Lima queria ser professor de História, mas quando conquistou uma bolsa integral para a Universidade depois de ter participado de um projeto no qual ficou em terceiro lugar, a família sugeriu que ele fizesse Engenharia para tentar uma vida melhor, e como ele conta rindo, “caso quisesse continuar tendo uma casa para morar”. Afinal, Lucas conseguiu as duas coisas: como sonhava, é professor; e como era do sonho da família, tem uma vida mais confortável.

Por meio do projeto da impressora Lucas ganhou diversos prêmios, como o prêmio Shell Iniciativa Jovem, prêmio pop da feira de negócios Shell, top Five da feira de negócios juventude empreendedora e um dos 15 empreendedores selecionados do programa de aceleração Start Ambev. 

Lucas também tem sido convidado para diversas palestras. Numa das palestras que durou 20 minutos, ele ficou por duas horas conversando com o público formado por crianças que tinham dúvidas sobre como aquilo poderia ser acessível para eles também, o que mostrava o enorme abismo social existente nas favelas. Foi aí que ele percebeu que poderia fazer a diferença dentro da própria comunidade, montando impressoras, e levando cursos de desenvolvimento, dando ferramentas e autonomia para os jovens.

Hoje ele é CEO da Infill, startup que nasceu da ideia de fazer uma fábrica de impressoras 3D no Complexo do Alemão, tendo um produto de tecnologia “made in” favela. Pela Infill, como voluntário num projeto chamado “SOS 3D Covid19”, ele usou do seu conhecimento e da sua tecnologia para imprimir máscaras 3D de proteção (face shield) que foram doadas para a comunidade.

Lucas também tem um sonho ousado: criar uma faculdade de tecnologia dentro da favela. E não para por aí, tem também a participação como P&D na Gerando Falcões, no projeto “Favela 3D”, que é um projeto de reurbanização de uma favela inteira, com impacto social, com impacto urbano, econômico etc. A propósito tudo o que ele fabrica, é a partir de sucata eletrônica e o insumo tem que ser utilizado quase 100% para que seja sustentável de verdade.

Ele costuma citar uma frase do escritor William Gibson: “O futuro já está aqui, só não está uniformemente distribuído”. E ele mesmo diz: “Quer entender de futuro, entre dentro de uma favela”. Para o futuro ele tem o sonho de uma faculdade de tecnologia dentro do Complexo do Alemão, a faculdade da quebrada.

Para maiores informações você pode acessar o perfil do instagram da Infill.

A COP26 de Txai Surui

Taxi Suruí. Foto: Gabriel Uchida/Instagram/Reprodução.

Txai Suruí, do povo indígena Suruí, de Rondônia, foi a voz do Brasil na COP26. Na sua fala, ela mostrou a potência da juventude que está engajada com a emergência climática pela qual estamos passando. E não é de hoje que Txai atua para preservação da cosmologia dos povos originários. Em 2012 ela participou de uma matéria para o programa Cidades e Soluções que mostrava a luta dos Suruí contra os invasores que desmatavam (e ainda desmatam) as florestas. 

Confira a seguir o discurso de Txai na COP26:

“Meu nome é Txai Suruí, tenho só 24 anos. Mas meu povo vive há pelo menos 6 mil anos na floresta Amazônica. Meu pai, o grande cacique, Almir Suruí me ensinou que devemos ouvir as estrelas, a Lua, o vento, os animais e as árvores.

Hoje, o clima está esquentando, os animais estão desaparecendo, os rios estão morrendo, nossas plantações não florescem como antes. A Terra está falando. Ela nos diz que não temos muito tempo.

Uma amiga me disse: “Vamos continuar pensando que como pomadas e analgésicos os golpes de hoje se resolvem embora saibamos que amanhã a ferida será maior e mais profunda? ”

Precisamos tomar outro caminho com mudanças corajosas e globais. Não é 2030 ou 2050. É agora!

Enquanto vocês fecham os olhos para a realidade, o guardião da floresta Ari Uru-Eu-Wau-Wau, meu amigo de infância, foi assassinado por proteger a natureza. Os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática, por isso devemos estar no centro das decisões que acontecem aqui.

Nós temos ideias para adiar o fim do mundo.

Vamos frear as emissões de promessas mentirosas e irresponsáveis; vamos acabar com a poluição das palavras vazias e vamos lutar por um futuro e um presente habitáveis.

É sempre necessário acreditar que o sonho é possível, que a nossa utopia seja um futuro na terra.

Obrigada.”   

Assista o discurso de Txai Suruí na COP26.

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