Imagem de David Mark

Não se pode agarrar a mente

Neste texto, Mestre Dogen nos aponta para o príncipio da “mente indefinível”


Por
Revisão: Danilo Martelli
Transcrição: Ormando M. N.
Tradução: José Fonseca

Certa vez Sakiamuni disse, “Mente no passado, Mente no presente, Mente no futuro, não pode ser apreendida.” Este ensinamento, encontrado no Sutra do Diamante, foi transmitido de geração a geração a todos os budas e patriarcas. A única maneira de compreender passado, presente e futuro é utilizar a nossa própria “mente indefinível”, aquela que não pode ser apreendida. Uma “mente indefinível” para pensar e analisar. Tudo na nossa vida cotidiana deveria ser em função da “mente indefinível”, aquela que não pode ser apreendida por definição de tempo ou de espaço, de substância ou de não-substância.

Todo buda, desde Sakiamuni, tem procurado o princípio de “mente indefinível” através do zazen. Se os budas e patriarcas não tivessem alcançado esta mente, nada teríamos para guiar nossa busca. Precisamos de um alto parâmetro para perceber a “mente indefinível”, tão alto que nem os estudiosos do budismo são capazes de concebê-lo. No entanto, este parâmetro não está distante, mas muito próximo.

Certa vez, mestre Zenkan Tokusan (779-865) disse, “Entendi o Sutra do Diamante. Minha compreensão do comentário de Seiryuji é incomparável. Eu sou o maior mestre da interpretação deste sutra”. Tokusan também escreveu doze volumes de comentários sobre o Sutra do Diamante e a profundidade de suas palestras era insuperável. Ele foi o mais erudito dos estudiosos de sua época e o último monge zen a defender a supremacia das escrituras.

Um dia ele ouviu dizer que um famoso mestre no sul da China transmitia a Verdadeira Lei. Enciumado, Tokusan resolveu ir testar o conhecimento daquele mestre sobre as escrituras. Foi levando consigo todos os seus volumes de comentários e notas. No caminho, ele soube que haveria um seshin (retiro) dirigido pelo famoso mestre Soshin Ryutan (782-865) e tomou o rumo do templo. Antes de lá chegar, parou para um breve descanso. Mal se sentara, uma mulher muito velha aproximou-se e parou para descansar ao seu lado.

Tokusan perguntou, “Quem é você?”

“Sou vendedora de bolinhos de arroz”, ela respondeu.

“Que bom! Eu gostaria de comprar alguns”, ele disse.

“Para quê?”, ela perguntou.

“Estou com fome e quero comer um pouco”, ele replicou.

E a velha prosseguiu, “Diga-me, honorável monge, o que tem na sua mochila?”

Tokusan lhe disse, “Já ouviu falar do mestre dos mestres do Sutra do Diamante? Sou eu. Ninguém no mundo conhece este sutra melhor do que eu. Eu sei tudo que se pode saber sobre ele. Nesta mochila eu levo os meus comentários.”

Ouvindo isso a velha disse, “Eu tenho uma pergunta. O senhor me permite?”

Ele respondeu, “Claro, pergunte o que quiser.”

“Muito tempo atrás”, disse a velha, “ouvi alguém cantar o Sutra do Diamante. Tem um verso que nunca esqueci, que diz: ‘Mente não pode ser apreendida no passado, no presente ou no futuro’. Se o senhor compra um bolinho de arroz, com que mente o senhor come? Se me responde, eu lhe vendo um; se não, terá de passar fome”.

Tokusan ficou tão espantado que não respondeu e a velha foi embora deixando-o de barriga vazia.

É lamentável que tão grande conhecedor do budismo, que estudou milhares de volumes de comentários e teorizou sobre eles durante muitos anos, não tenha respondido à pergunta simples da velha. Há uma diferença enorme entre adquirir conhecimento através de livros e adquirir conhecimento através da experiência. Pela primeira vez Tokusan soube, para seu desconsolo, que o desenho de um bolinho de arroz não mata a fome. Mais tarde, Tokusan tornou-se discípulo do mestre Ryutan e transmitiu a Verdadeira Lei, mas provavelmente, mesmo então, ainda tremia só de pensar na velha. De qualquer maneira, depois de anos de estudo, Tokusan não alcançou a verdadeira sabedoria budista – ele ficou longe de ser iluminado.

Porém, não devemos simplesmente rir de Tokusan e louvar a velha. Embora ela tenha feito Tokusan parecer um bobo, não podemos ter certeza de que ela mesma fosse iluminada. Como Tokusan ainda não era o verdadeiro Tokusan (iluminado), ele não era capaz de avaliar a compreensão dela. Além disso, ela não respondeu a sua própria pergunta – se tivesse respondido poderíamos ter certeza de que era iluminada. Ela pode ter pensado que aqueles versos do Sutra do Diamante significavam que se a Mente não pode ser apreendida, ela não existe. “A menos que a pessoa fale a verdade, ela não é iluminada”, eis um ditado que pode ser aplicado à velha. Por outro lado, Tokusan foi culpado por se vangloriar do próprio conhecimento.

Reconstruamos esta história, colocando-nos no lugar de Tokusan. Quando a velha fez a pergunta Tokusan deveria ter dito, “Então não me venda os bolinhos”, ou algo assim. Se o dissesse ficaria claro que era iluminado, ou que pelo menos tinha ótima compreensão.

Por outro lado, se Tokusan tivesse dito, “Não sei. Qual é a mente que usamos para comer bolinho de arroz?” e a velha teria de responder, “Sua mente está preocupada demais com o bolo de arroz; você não sabe que a sua mente contém o bolo de arroz. A própria mente não sabe o que pegar para comer um pouco”. Se Tokusan não entendesse, e ele certamente não ia entender, a velha deveria oferecer-lhe três bolinhos de arroz e dizer, “Nossa Mente não pode ser apreendida no passado, presente ou futuro!” Quando Tokusan fosse alcançar os bolos ela deveria pegar um, atirar nele e gritar: “Seu monge estúpido! Deixe de ser idiota!”

Se Tokusan desse uma boa resposta, ela poderia se dar por satisfeita e saber que ele aprendera a lição. Se não, ela deveria tentar explicar melhor. Na história original, no entanto, ela o deixou lá, sem mostrar nenhuma intenção de guiá-lo à verdade. Também, Tokusan não disse, “Não sei, minha velha, por favor, diga-me o que devo responder”. No diálogo original, nenhum dos dois demonstrou qualquer compreensão verdadeira. Este fato é lamentável.

Tokusan ficou nessa situação durante muito tempo depois disso. Ele estudou ainda mais com Ryutan, fazendo o primeiro contato com o verdadeiro ensinamento budista, mas não chegou a nenhuma grande iluminação até a noite em que, caminhando num corredor escuro, Ryutan apagou de um sopro a sua vela. É longa a preparação para a iluminação, mas ela acaba vindo de súbito, aparentemente por acaso. Não pensem, porém, que este acontecimento tão insignificante seja um mero acidente.

Para transmitir a Lei, vocês precisam ser diligentes, sinceros e humildes no estudo do Caminho Budista. Não sejam preguiçosos! Não fujam das dificuldades. A dificuldade é necessária para o avanço. Isto vale para todo estudo budista. Não tente definir sua mente. Tentar apreender a mente é como tentar comer o desenho de um bolo de arroz.


Mestre Dogen (1200-1253) estudou na China com o Mestre Tendo Nyojo (Tien Tung Juching, 1163-1228) e introduziu o Budismo Soto Zen no Japão.

Tentar apreender a mente é como tentar comer o desenho de um bolo de arroz. No verão de 1242, Dogen Zenji falou sobre a natureza da mente aos monges de Koshohorinji, em Uji, no ducado japonês de Yamashiro. Esta palestra do Darma é um dos capítulos do Shobogenzo (Olho e Tesouro da Verdadeira Lei) de Mestre Dogen, traduzido por José Fonseca, da edição de Kosen Nishiyama, Tokyo, 1988. Shinfukatoku


Apoiadores

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *