Lama Padma Samten explica porque estamos numa rota de colisão e quais são as saídas para a crise ambiental que vivemos
Numa mesa, reunindo especialistas sobre meio ambiente, em novembro de 2018*, em Porto Alegre (RS), o Lama Padma Samten abriu o campo de visões sobre a questão ambiental desde a década de 1970, quando extensos mapeamentos científicos trouxeram números alarmantes sobre a necessidade de se transformar radicalmente a nossa relação com o ambiente natural.
Ele apontou, especialmente, a abordagem de desenvolvimento focada exclusivamente no crescimento econômico das nações como fadada ao fracasso e totalmente ultrapassada, já que não considera a interdependência entre os seres. Porém, por ainda ser amplamente vista como solução, essa abordagem segue gerando resultados catastróficos no meio ambiente e nas relações humanas.
Lama Samten questiona e nos revela a necessidade de trocarmos os nossos referenciais que simplesmente consideram que a expansão do processo econômico é tudo. “Eles estão ultrapassados, totalmente ultrapassados. Isso já está estudado desde a década de 1970, e agora nós estamos vivendo a realidade disso”. E nos lembra, dessa forma, qual paradigma precisa ser atravessado e qual modelo precisamos cultivar: “Existimos em conexão: na medida em que nos protegemos e ajudamos uns aos outros, garantimos a nossa própria existência e felicidade”.
Veja abaixo trechos da fala do Lama Padma Samten!
Acompanho a questão ambiental já há algum tempo. Naquela época comecei, naturalmente, com o José Lutzenberger, ativista e filósofo que criou a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN). Desde então, entre as coisas que considero mais ou menos permanentes nessas reflexões, há o estudo sobre os limites da expansão econômica.
Essa é uma questão que está sempre no nosso horizonte. Temos o exemplo do estudo do Clube de Roma, criado em 1968 por um grupo de empresários e economistas de diversos países, que foi refeito recentemente. De tempos em tempos, este estudo é reavaliado e, embora alguns dos pesquisadores originais deste trabalho tenham morrido, os estudos seguem.
Os limites da expansão econômica, no mínimo, nos oferecem duas grandes leituras sobre o que está acontecendo. Uma delas é não crítica – de modo geral, adotada pelos meios de comunicação e a outra é mais crítica ou mais investigativa sobre o que a expansão econômica está produzindo.
Vemos a primeira leitura ao olharmos os políticos que postulam a expansão econômica como resolução dos problemas. Talvez porque já seja velho, já escutei isso muitas vezes: desde a época de Delfim Neto, dos governos militares, no início dos anos 1970. Houve o “Brasil Grande”, quando ocorreu uma expansão econômica. E o Delfim Neto dizia: “nós precisamos ampliar o bolo para dividir.” Era sempre essa a visão.
A posição do governo brasileiro na primeira Conferência Mundial do Meio Ambiente foi algo assim: “nós não temos problemas ambientais, a poluição é bem-vinda. Nós temos sim pobreza aqui dentro, então nós precisamos de indústrias, de industrializar o país”. Essa era a visão. De modo geral, o conjunto principal de pessoas opera dentro dessa perspectiva.
Mas existem outras visões. Há um número importante de pessoas raciocinando em rede, pensando sobre como produzir outros movimentos, porque percebem que não é possível de outra forma. Por exemplo, as dificuldades econômicas e a ascensão da direita hoje tem uma leitura que surgem do movimento ecológico. Enquanto isso, o mainstream, isto é , a tendência dominante não faz a leitura: eles ficam simplesmente surpresos com o surgimento de um movimento de direita, sem perceber que existe uma conexão com a questão ambiental.
Precisamos entender quais são as questões principais que estão ocorrendo agora; porque simplesmente vão nos passar por cima, como um trem que passa por nós enquanto estamos apenas olhando aquilo. Nem vemos as coisas acontecerem…
A questão é a seguinte: aquilo que era barato na natureza se esgotou. O jargão da linguagem econômica é olhamos para todas as coisas e vemos recursos. Lidamos só com recursos: recursos pesqueiros; florestais; recursos do solo; recursos hídricos. Isso é um jargão econômico e introjetamos isso. É vergonhoso, porque chegamos ao ponto de dizer “recursos humanos”. Mas não somos recursos, somos seres vivos.dotamos uma posição antropocêntrica e não olhamos os outros seres. Pensamos que somos a dominação do processo todo, mas não somos: nós existimos em vida. Os biólogos veem isso, os ecologistas trabalham com essa noção. A vida é inseparável das várias espécies, elas se ajudam. E isso vem desde as bactérias: se não houver a bactéria específica, a árvore não cresce; se não tivermos a bactéria intestinal, não crescemos, não nos alimentamos. Do mesmo modo, as raízes têm uma micorriza que faz a interface da mesma forma que as nossas bactérias intestinais: estas são essenciais para processar os alimentos que passam por dentro de nós.
A vida é super complexa, inclusive a dos insetos. Mas, fazemos intervenções. Aquilo que não está de acordo com a nossa intervenção, nós vamos considerar que é peste, que é problema. E, como o José Lutzenberger dizia, nós tentamos fazer um equilíbrio não sistêmico, introduzindo outros elementos para produzir um equilíbrio onde a fonte do desequilíbrio foi a nossa ação.
A nossa ação produz um desequilíbrio que não é um desequilíbrio, é um desequilíbrio do nosso olhar. Por exemplo, os outros seres se posicionam em relação ao que está oferecido na natureza e eles vão se movimentando de acordo com o que está acontecendo. Para nós, aquilo é um problema. Então surge dentro da visão antropocêntrica uma série de aparentes desequilíbrios, mas só são desequilíbrios na nossa visão. Na verdade, é a natureza se reequilibrando: reequilibrando o desequilíbrio que a gente propicia. Mas o conjunto de todas as nossas ações (ou, se usarmos o jargão econômico, o processo econômico) foi esgotando aquilo que era fácil explorar.
Lembrem que os Estados Unidos eram exportadores de petróleo, com bombas na superfície do solo. Mas, hoje, como é que eles estão extraindo petróleo? Eles se tornaram exportadores fazendo fracking: estão explodindo por baixo e tirando xisto. Trata-se de um dano ambiental que eu não sei como é possível que aconteça! Enquanto isso, aqui temos dificuldade em fazer o licenciamento para a concessão da estrada em Viamão. Por exemplo, nós queremos melhorar a estrada em Viamão e, para isso, temos que fazer o licenciamento ambiental do acostamento da estrada. Nós vamos precisar de meses para isso.
Como é que se consegue, então, liberar a explosão do subsolo para conectar os bolsões de xisto que vem de baixo e exportar isso? É uma coisa totalmente suicida. O ponto é que é muito mais caro tirar xisto do que bombear petróleo desde a superfície. E nós estamos vivendo isso. Em algumas décadas, nós esgotamos aquilo que era mais fácil.
Não considero os peixes recursos pesqueiros, mas no jargão econômico hoje a vida no mar é 10%, 15% do que era há um tempo atrás. Tudo começa, então, a ficar mais difícil e o processo econômico como um todo fica impactado. Eu vi um estudo ambiental pré-guerra na Síria onde eles estudaram como o lençol freático na bacia do Rio Eufrates estava baixando. Ou seja, eles não estavam mais conseguindo bombear para as plantações. Houve uma migração para os centros urbanos e as pessoas ficaram inúteis dentro das cidades. Isso propicia um tipo de desequilíbrio que vai surgir como uma tensão social inevitável.
Vamos encontrar, então, questões sociais diretamente ligadas às questões ambientais – sobretudo, a questão do custo maior para acessar os elementos que nós precisamos para manter a expansão do processo econômico ou para sustentá-lo.
Assim, na visão dos limites da expansão do processo econômico nós estamos encontrando um patamar parecido com o que, àquela época, o estudo do Grupo de Roma chegou. Esse estudo – de grandes empresas internacionais como a Volkswagen – avaliava se era possível seguir do jeito que o mundo estava seguindo; e chegou-se à conclusão de que não era viável.
Posteriormente, a Fundação Bariloche foi convidada para fazer um estudo levando em consideração o, como era chamado naquele tempo, Terceiro Mundo. Sim, as economias menos desenvolvidas teriam que se desenvolver; não vamos congelar essa discrepância toda. Mas o que acontece é que nós estamos chegando num ponto que não sei bem como tudo vai andar. A direita internacional está se preparando para a guerra final. E a guerra final é assim: eles vão tentar sustentar os desequilíbrios na forma como estão. Eles não vão querer que as coisas se reequilibrem, então quem tem algum tipo de vantagem vai tentar se colocar na frente e criar as barreiras todas. É muito simples. Nós vamos encontrar esse tipo de tensão.
Não sei bem como os comunicadores vão olhar, mas já estamos enfrentando isso. Observem as regiões que estão inferiorizadas, como o norte da África e o Oriente Médio: e as migrações em direção à Europa. Se olharem com cuidado – não só o aspecto antropocêntrico, mas também aspecto eurocêntrico – a cultura eurocêntrica destrói as outras culturas e as torna inviáveis. As pessoas se lançam dentro de botes – e não são uns desesperados sem dinheiro. São pessoas que conseguiram pagar um lugar dentro daquele bote, daqueles barcos, e eles se lançam. Muitas vezes, são pessoas educadas que tentam atravessar. Os europeus ainda não se deram conta que se não tentarem fixar as populações do norte da África através de programas onde as pessoas possam viver de uma forma equilibrada, eles vão continuar com esse desequilíbrio.
Do mesmo modo, a política do Donald Trump é criar barreiras, cercas e muros e manter todos os outros de uma forma inferiorizada e desigual. Vamos ter caravanas por todo o lado, chegando nos muros e pedindo para entrar, para saltar. Olhem o que aconteceu com os muros europeus nas regiões que são dominadas pela Europa na África: as pessoas simplesmente pulam aqueles muros; eles colocam telas enormes, mas as pessoas vão escalando e pulando para dentro. Quem pulou pra dentro virou europeu e eles não mandam mais pra fora.
Então essa é uma tensão, e nós vamos ver essas tensões se ampliando. As políticas de direita não tentam lidar com isso. As políticas sociais democráticas trabalhavam com essas questões buscando a promoção do desenvolvimento em todos os lugares. Mas nós estamos nesse momento em que os Estados Unidos se levantam e são muito claros: America first. E ponto. Por que America first? Porque America first e pronto. É simples.
Encontramos também um conjunto de políticas restritivas que simplesmente não tem uma razão para serem deste modo; mas, vai ser assim, e pronto. É isso. Quem gostar, tudo bem; quem não gostar, entenda que a maior parte do povo brasileiro votou e acha bom. Nós estamos vivendo esse tipo de dificuldade.
O limite da expansão econômica é um dos aspectos. O segundo aspecto é o que a expansão econômica está produzindo. Ela está simplesmente destruindo aquilo que é considerado rede.
Mas o que o paradigma econômico pensa dos desempregados? Eles são desempregados e pronto. No paradigma econômico, são as ONGs que vão se preocupar com as pessoas? Não são. Se vocês leem as cartas de fundação das instituições, elas não têm nenhuma preocupação social, elas têm preocupação com o lucro. É isso. Nenhuma organização desse tipo existiu antes na biosfera; essas organizações são totalmente destrutivas, vão encontrar seu limite de uma outra maneira, pois vão expandindo de um jeito e depois não conseguem mais expandir. Mas, e o que manteve a riqueza das pessoas, o que as sustentou? Não foi apenas a compaixão dos pais, foi a biosfera como um todo!
A vida como um todo sustenta cada ser da biosfera na sua individualidade. Surgimos assim e assim vivemos. A visão antropocêntrica está ultrapassada, é uma bobagem. Não temos que lidar apenas com a rede dos seres humanos.
Se vocês observarem, eles olham os rios como se fossem fluxos de água onde eles medem aquilo e acham que é permanente. “Diz aí que quero a água para bombear porque quero ganhar dinheiro!”. É assim: “Devasto tudo e, enquanto devasto tudo, a água do rio desaparece. E então tenho um problema. Mas as coisas são todas interligadas. Considero que o agronegócio vai descobrir que terão que ser ecologistas o mais rápido possível porque é necessário olhar de forma mais ampla. A forma estreita de olhar não é uma boa ideia.
Além do mais, o processo econômico está produzindo vários tipos de epidemia, entre elas, as epidemias das doenças psíquicas. É uma coisa espantosa! Entrem na internet e olhem as crises que vem da overdose. As mortes por overdose nos Estados Unidos alteraram as estatísticas de expansão da vida média do cidadão norte-americano. O tempo de vida média dos cidadãos norte-americanos diminuiu agora devido a overdose. Não é câncer, é overdose. E por quê overdose? As pessoas têm vidas muito artificiais, elas começam com dores e vão tomando remédios e aumentando e aumentando ao ponto em que a pessoa começa a tomar heroína porque é mais barato que os remédios usuais e os remédios usuais já não funcionam mais. E então eles seguem tomando heroína e morrem. E não é gente desesperada, que não tem formação; são pessoas que têm recursos e acesso à informação, mas elas entram nesse processo e não tem como ultrapassar.
É necessário trabalhar com essa visão: nós temos que trocar os nossos referenciais que simplesmente consideram que a expansão do processo econômico é tudo. Eles estão ultrapassados, totalmente ultrapassados. Isso já está estudado desde a década de 1970, e agora nós estamos vivendo a realidade disso. É melhor entender.
Para concluir, queria lembrar que nós estamos montando uma espécie de fórum permanente e vamos considerar este fórum como uma rede de pensadores. Desde o ano de 2000 já fazemos o nosso encontro “108 Horas de Paz”* – anualmente, fazemos este encontro inter-religioso, intercultural, com cientistas e pessoas de várias áreas. Neste ano vamos ampliar o 108 Horas, trazendo também várias instituições como o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil.
Fico sensibilizado por essa conexão dos budistas com os conselhos das igrejas cristãs. Eles também entendem isso, compreendem totalmente essa questão. Do mesmo modo, o Fórum Permanente de Ensino Religioso é super importante, pois ele regula o ensino religioso nas várias escolas. Também convidaremos o Instituto de Estudos da Religião (ISER), do Rio de Janeiro, que tem 50 anos de atividades no campo entre a religião e ação social; a Iniciativa das Religiões Unidas, que surgiu copiando a Organização das Nações Unidas e criou uma organização mundial que está representada em muitos diferentes países; também o Observatório Transdisciplinar das Religiões de Recife, que tem uma conexão com a universidade de lá. Além destas instituições, também teremos a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, que tem muitos anos de operação e atravessou toda essa questão publicando e fazendo ações super importantes; o Via Zen; o Instituto Zen Maitreya, representado aqui pelo Celso Marques; e também os Guaranis.
Se vocês forem ao CEBB nessa época, lá vão encontrar acampados diferentes grupos Guaranis e também grupos de outras etnias. Porque eles também sentem isso; eles têm uma visão muito interessante sobre como as coisas funcionam. Então considero muito importante juntarmos essas visões e de outras instituições para promover uma agenda e pensarmos, nos organizarmos.
Temos duas escolas no Brasil que estão focadas nesse tipo de visão – Escola Caminho do Meio e Escola Vila Verde. Elas não estão focadas no processo econômico propriamente dito. Estamos em vias de organizar um College, que seria uma escola aberta para os alunos que concluem o ensino médio. A educação é uma área é muito importante. Estamos também buscando estabelecer parcerias com as universidades, porque essas áreas introduzem várias ideias sobre pesquisas e ações sociais. Convido vocês para estarem juntos de algum modo.
Que a gente não se perca totalmente. Que nós possamos nos encontrar, e que possamos fazer boas coisas.
Em 6 de novembro de 2018, o Lama Padma Samten participou da mesa de encerramento do VIII Fórum Internacional de Gestão Ambiental, que ocorreu no Ministério Público de Porto Alegre. O evento foi promovido pela Associação Riograndense de Imprensa. A Carta Aberta sobre Valores Humanos e Ambientais no Brasil, que foi elaborada em conjunto com várias instituições no dia 21 de outubro de 2018, no CEBB Caminho do Meio, foi lida durante o debate. Participaram o presidente da AGAPAN, Francisco Milanez, e Celso Marques, presidente do Instituto Zen Maitreya, um dos conselheiros da AGAPAN.
Veja aqui a cobertura especial do 108 Horas de Paz →
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1 Comentário
Gratidão pela transcrição 🙂