Foto: Yousef Al Nasser

O que é uma sociedade iluminada?

Junto com Kaz Sensei, refletimos sobre cultura de paz, não violência e a questão armamentista


Por
Revisão: Caroline Souza e Lia Beltrão
Edição: Caroline Souza e Lia Beltrão
Transcrição: Geovana Colzani
Tradução: Jana Macedo

“Jamais, em todo o mundo, o ódio acabou com o ódio. O que acaba com o ódio é o amor.”
– Buda

 

Estamos vivendo, a nível global, um tempo que nos convoca a manter a prática incessantemente acesa. Nosso planeta, a espécie humana e as inúmeras outras espécies com as quais compartilhamos morada atravessam, neste momento, um desafio sem precedentes: o risco de total esgotamento dos meios que tornam a existência possível. Na esfera da política internacional, há o perigo iminente de novas guerras: guerras que podem se configurar ainda mais arrasadoras e inconcebivelmente funestas, se o tão propagandeado uso de armas nucleares deixar de ser somente uma ameaça.

A nível nacional, assola-nos uma divisão que levanta muros, alastra medos e desenha inimigos nos rostos outrora vizinhos, amigos, parentes. Nossos olhos andam por estes tempos ainda mais vulneráveis a ver, lá fora, infernos que sabemos brotar das confusões de dentro.

É, por isso, premente que nos recordemos da coemergência. Através da prática da atenção plena, podemos estar conscientes dos movimentos sutis que nos conduzem aos estados mentais aflitivos, e podemos escolher. Podemos lembrar da nossa vida humana preciosa, da bênção incomparável que nos permite ouvir o Darma, ouvir os mestres, e nos sentir tocados. Podemos lembrar que todos os seres, sem exceção, querem ser felizes e não querem sofrer. Podemos lembrar das palavras do Buda apontando a única resposta possível — que no fundo, nunca esquecemos: compaixão, amor, sabedoria. Podemos refazer nossos votos.

Nós, da Revista Bodisatva, entendemos que nossa maior oferta e fonte de benefício, agora e em qualquer outro momento, é a possibilidade de ajudar a difundir as palavras dos mestres. Acreditamos na potência de uma cultura de paz, calcada sobre a integridade e sobre uma ética profunda. Entendemos que uma sociedade saudável deve promover valores como amor e compaixão, e deve se desenvolver a partir de uma visão de mundo que abarque a todos os seres, sem que nenhum fique de fora. Por esse motivo, hoje convidamos Kaz Tanahashi Sensei – artista, ativista e mestre Zen – a fazer soar nossa concha.

Há décadas, Kaz Sensei vem atuando incansavelmente pela diminuição das guerras, pela abolição das armas nucleares e pela desmilitarização das nações, promovendo uma sociedade pacífica e íntegra. Dentre outras iniciativas, é co-fundador da organização “Plutonium Free Future” (“Futuro sem Plutônio”) e diretor fundador de “A World Without Armies” (“Um Mundo sem Exércitos”).

Tendo em vista a onda de ódio que nos assola enquanto país e que vem nutrindo, em muitas pessoas, o desejo de se proteger e se armar, consideramos que as palavras de Kaz Sensei nos devolvem o norte e ajudam a vislumbrar caminhos possíveis. Sua visão se faz ainda mais necessária em face de recente movimento do Senado, que abriu consulta pública cogitando a revogação do estatuto do desarmamento.

Sancionado em 2003 e em vigor no país desde então, o Estatuto do Desarmamento proíbe o porte de armas a civis, a não ser em situação de comprovada necessidade. Sua revogação implicaria em uma facilitação do acesso a armas, uma decisão controversa em um cenário onde a morte de pessoas por armas de fogo portadas de forma ilegal já está expressa em números assustadores.

A consulta pergunta à população se ela concorda com a revogação do estatuto e sua substituição por nova lei. Ainda que não tenha caráter deliberativo, a votação é um importante indicador e pode influenciar a decisão final sobre a revogação.

Alinhados com a visão não violenta de Kaz Sensei, pesquisadores especialistas da área e diversas organizações sociais se posicionaram contra a medida e publicaram um Manifesto de Pesquisadores contra a Revogação do Estatuto, no qual são listados inúmeros estudos científicos que demonstram que a circulação de armas de fogo está, sim, vinculada ao aumento das mortes letais por armas de fogo — e não à sua redução. Para estes pesquisadores, os crescentes índices de violência no país se devem a políticas de segurança pública completamente ineficazes, que desconsideram as pesquisas científicas, as quais há anos vêm apontando caminhos para a redução da violência em nosso país.

Nós, da Revista Bodisatva, votamos “Não”. Nos posicionamos contra a revogação do Estatuto do Desarmamento, fazendo coro à voz de pesquisadores, organizações sociais, mestres e praticantes das mais variadas tradições, e também de Kaz Sensei, que nos oferece uma visão revolucionariamente prática de uma “sociedade iluminada”: um mundo sem guerra e sem armas.


Qual é a sua percepção de uma sociedade iluminada?

KAZ SENSEI: Acredito que seja uma sociedade com profunda paz, num mundo onde não mais haja nenhuma guerra: esta é a paz mais elevada. Inexistência de violência ostensiva, guerras ou atentados terroristas: penso que isto seria pré-requisito para uma sociedade iluminada.

Acredito que a sociedade deveria promover direitos humanos para todos, equidade para todas as pessoas, rendas mais justas, bons serviços de saúde e de educação, e, com isso, um compromisso com soluções não violentas de conflitos internos e internacionais.

Além disso, deveria ser uma sociedade sem corrupção, calcada numa democracia genuína. Diversas democracias são fundamentadas em dinheiro e poder — ou em outras relações desta natureza — mas não é possível considerá-las democracias genuínas.

Sobretudo, precisamos nos colocar estas perguntas: O que é uma democracia genuína? O que é uma sociedade iluminada?

Como fazemos para frear a violência de forma não-violenta?

KAZ SENSEI: Esta pergunta é muito importante e não há uma resposta universal. Eu acho que cada situação é única, então precisamos refletir profundamente e encontrar a resposta mais apropriada para as situações violentas, considerando-as individualmente. A melhor forma é buscar bons exemplos, como mudanças sociais levadas a cabo de forma não violenta.

Historicamente, a maioria das transformações de regime foram fruto de movimentos não violentos. Levantes violentos que obtiveram sucesso são mais escassos. Há muitos estudos publicados por acadêmicos a respeito destas questões, de forma que precisamos nos aprofundar no exame e compreensão destes estudos.

Penso que, talvez, o melhor caminho seja buscar os bons exemplos e tentar aplicá-los a cada realidade, levando em consideração suas peculiaridades.

Trechos retirados do documentário sobre o trabalho e visão de mundo de Kaz Sensei, Waging Peace, dirigido por Martijn Robert.


Saiba mais


Complemente sua leitura

  • Lama Padma Samten comenta o momento atual e nos lembra o que fazer: seguir praticando. Leia aqui →
  • Kaz Sensei esteve em 2018 no Brasil e a Bodisatva fez uma cobertura especial das palestras, retiros e exposições que fez enquanto esteve por aqui. Confira  →
  • E ele também foi inspiração para a Bodisatva 30. Publicamos ensaios e uma entrevista muito especial com este grande mestre Zen . Veja mais sobre a edição →

Apoiadores

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *