Pintura em óleo: Michele Happe (mhappenow)

Chagdud Rinpoche, um construtor de estradas

Lama Padma Samten lembra a história de seu professor, que completaria hoje 88 anos


Por
Revisão: Caroline Souza
Edição: Bruna Crespo
Transcrição: Bruna Crespo

“O encontro com o mestre é algo mágico, da maior relevância em incontáveis vidas…
Nada mais vasto ou maior.”
Lama Padma Samten

 

No dia 12 de agosto, a Sanga comemora o aniversário de Chagdud Tulku Rinpoche. Conhecido como “o poderoso Senhor da Dança”, sua passagem pelo Ocidente foi importante na abertura de caminhos para o budismo tibetano em diversos países. No Brasil, Chagdud plantou e cuidou incansavelmente de muitas sementes, oferecendo ensinamentos, orientando alunos, construindo templos e criando um solo favorável para o florescimento de uma preciosa cultura de práticas contemplativas – extraordinariamente disponível para nós, iogues do cotidiano.

Em honra a este grande mestre, agradecemos e nos alegramos com os frutos de sua presença lúcida e compassiva, que segue viva em nossos corações – para além de vida, morte e tempo. Compartilhamos, ainda, um pouco da história de sua dança nas palavras de nosso querido professor, Lama Padma Samten, que tornou possível a celebração deste precioso encontro com a linhagem!


“Chagdud Rinpoche, assim como outros mestres do budismo tibetano, nasceu no Tibete. Ele já era um mestre lá quando, pela invasão chinesa, foi forçado a fugir em direção à Índia. Isso é uma etapa da vida dele muito interessante em sua autobiografia – O Senhor da Dança. Ele narra a dissolução progressiva de tudo aquilo que poderia ser sólido na vida dele. O Rinpoche diz que durante a vida, várias vezes, ele perdeu tudo. Totalmente. Ficou sem nada.

E a saída dele do Tibete aconteceu em uma dessas circunstâncias. Ele era casado, a esposa e a família dele também tinham muitas propriedades. Estavam super bem, ele tinha muita confiança. Quando os chineses invadiram, em vez de fugir, Chagdud resolveu caminhar na direção dos chineses. Não imaginava que os chineses pudessem fazer coisa alguma, porque aquilo estava fora do bom senso. Enquanto ele caminhava em direção aos chineses, os outros tibetanos fugiam na direção contrária, narrando para ele o que estava acontecendo. E Rinpoche insistia: não, eu vou seguir. E seguiu.

Quando estava perto dos chineses, se deu conta de que talvez não fosse um boa ideia mesmo. [risos] Mudou de ideia e correu! Ele veio porque os chineses estavam matando, torturando, mesmo os grandes mestres, que eles resolveram desmoralizar. Conduziam os mestres a situações muito vexatórias, muito tristes, na frente de todos os alunos deles para que perdessem a fé nos mestres, no budismo, e para que aquilo fosse se quebrando. Faziam muita maldade.

Então, Chagdud Rinpoche mudou de ideia e começou a caminhar em direção à Índia. Só que a caminhada para a Índia é muito longa, muito difícil. Vocês imaginem que não tem supermercado no caminho, não tem hotel, não tem pousada, não tem dinheiro… Não tem nada. Eles caminhavam no meio do gelo e da neve em temperaturas muito baixas. E se encontrassem pessoas solidárias, que oferecessem comida e apoio, tudo bem. Se não encontrassem quem oferecesse, eles iam morrendo. Muitos e muitos morreram nessa caminhada.

E Chagdud foi indo. Ainda foi transportando alguns pertences deles. Mas ao longo do caminho, foi perdendo tudo o que estava transportando. Ele conta que quando já estava na fronteira do Nepal, tinha conseguido chegar, ele e o grupo guardaram tudo dentro de uma caverna e foram até a cidade. Nesse ínterim, os chineses chegaram e dominaram aquela cidadezinha do povoado. Eles precisaram fugir rapidamente. Não puderam passar na caverna e pegar as coisas. Perderam aquilo tudo. Seguiram só com a roupa do corpo. E muita fome.

Quando estavam atravessando o rio que fazia o bordo entre o Tibete e o Nepal, Rinpoche estava muito fraco, pela fome e por tudo. Atravessando a ponte, ele ficou tonto, sentiu uma vertigem e caiu. Mas o guia se jogou atrás e o tirou da água.

Chagdud já não tinha nada. As últimas coisas que carregava se foram com a água. Não sobrou nada. E assim ele começou a vida de novo.

Chegando na Índia, o governo de lá era pobre, mal conseguia sustentar os indianos. Não tinham como acolher indianos nem tibetanos. Então, os tibetanos começaram a ganhar um salário para trabalhar construindo estradas. Chagdud Rinpoche foi um construtor de estradas. Ele pegou pá, picareta, pegou as coisas e começou a trabalhar. Eles não distinguiam quem tinha valor e quem não tinha valor, estudo, habilidades. Todo mundo se encontrava nessa mesma condição.

Nessa época, Chagdud se aproximou de Dudjom Rinpoche, que também tinha conseguido chegar à Índia. E S.S. Dalai Lama estava reconstruindo as quatro linhagens, encontrando os mestres que tinham conseguido fugir do Tibete. Eles estavam tentando reconstruir as linhagens em uma condição muito frágil. Assim, Chagdud se tornou um ajudante direto de Dudjom Rinpoche, que nós estamos citando o tempo todo aqui nos textos do CEBB. É uma emanação direta de Dudjom Lingpa. São grandes mestres. Diz-se que o último texto da transmissão de ensinamentos da linhagem Nyingma que restou no Tibete foi o que Dudjom Rinpoche conseguiu trazer. Foi um tempo extraordinário.

Então, Rinpoche chegou na Índia e foi ampliando suas atividades. Teve um período em que ele, já no início, começou a fazer práticas de Powa para a transferência da consciência da multiplicidade de tibetanos que estavam morrendo. Os tibetanos estavam fracos, se alimentando de comida indiana, que nunca tinham comido antes. Eles não estavam acostumados, nunca tinham visto um tomate, não sabiam para que servia aquilo. Não conheciam a maior parte dos vegetais. Viraram vegetarianos abruptamente, de um dia para o outro, e o corpo não respondeu bem. Muitos ficaram fracos e morreram.

Chagdud contava que, nessa época, as funerárias, queimando os corpos, não se apagavam. Era cada vez mais madeira, mais gente para queimar. E ele fazendo prática de Powa para os seres. Essa foi uma das especialidades dele.

Mais adiante, ofereceu vários ensinamentos sobre transferência de consciência no momento da morte pela prática de Powa. Esse é um ponto importante de observar.

Num certo momento, a convite do Pierre Weil, Rinpoche veio ao primeiro congresso holístico internacional, acho que foi em Brasília. Ele veio e estabeleceu uma conexão com o Brasil. Passou a vir regularmente, as pessoas começaram a convidar. Em 1993, ou seja, há muito tempo, ele nos escreveu através do Manoel Vidal, perguntando se o CEBB organizaria um evento com Chagdud Rinpoche. O CEBB existia desde 1986. Nós ficamos muito felizes, parecia que estava chegando algo grande.”


Transcrição de ensinamentos oferecidos durante o Retiro de Inverno 2018, no CEBB Caminho do Meio (Viamão – RS).


Chagdud Tulku Rinpoche, um mestre de meditação altamente realizado, artista e médico tibetano, criou centros para a prática e o estudo do budismo vajrayana em países como Estados Unidos, Canadá, Europa e Brasil. Um de seus alunos ocidentais foi Lama Padma Samten, a quem ofereceu ordenação como lama em 1996.


Saiba Mais

Na Revista Bodisatva, você encontra alguns dos ensinamentos deste precioso mestre, que foram revisitados pela nossa seção Acervo:


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1 Comentário

  1. Ormando M.N. disse:

    Grande Senhor da Dança, “Nó de Ferro” :}

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