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A doença mental na perspectiva budista | Parte 2

Seguimos com a série de ensinamentos de Lama Padma Samten sobre como lidar com as doenças mentais e perturbações


Por
Transcrição: Carmen Padma Jinpa Zamora

Então se diz: todos os seres (nós) estão dentro da roda da vida. Não é completamente verdadeiro, porque os bodisatvas não estão dentro da roda da vida nem os budas. Se eles não estão na roda da vida, isso não é uma coisa “eles isso, eles aquilo”. A natureza livre pode operar dentro da roda da vida e pode operar com outra característica. Quando ela opera com outras características que não são as da roda da vida, elas podem por exemplo, estar operando com características que nós vamos chamar dos seres que se manifestam como bodisatvas, dos seres que se manifestam como budas. Eles não estão na roda da vida, estão fazendo uma outra coisa. Como num campo de batalha, vocês podem encontrar os enfermeiros, médicos sem fronteira, a Cruz Vermelha. Sob os olhos de quem está no campo de batalha, podem pensar: “Estão resgatando os inimigos, estão ajudando os inimigos”. Mas eles não estão com aquele olho da guerra, estão fazendo uma outra coisa. Então, nós também podemos fazer uma outra coisa.

É natural que dentro dos mundos onde nós estamos vivendo a gente olhe os outros como alguém que está desempenhando algum papel dentro do mundo que a gente sente que nós estamos vivendo. É natural. Então nós olhamos em todas as direções e pensamos que só existe a roda da vida, mas não é assim. Nós temos a natureza livre e entramos na roda da vida como um adolescente entra num jogo de computador, ou como seres livres, lúcidos, torcem por times dentro da roda da vida do campeonato nacional. Quando nós entramos nisso, aquilo parece completamente sólido. A gente abre os jornais, ali temos literalmente rolos de papel, cascatas de tinta trazendo mundos virtuais, como o campeonato nacional, completamente virtual. As pessoas que não estão vinculadas a isso olham, param e passam por cima. Como a gente olha, por exemplo, os classificados e não lê. Como a gente olha os cadernos sobre programas de televisão e também não lê.

São mundos específicos. As pessoas que estão ali dentro têm a noção de que aquilo é um mundo sólido e aquilo dá todos os sinais de ser um mundo sólido. Mas não é. Não apenas aquilo não é, mas o do jornal também não é. Então nós temos relatos sobre mundos particulares ali dentro, que parecem mundos reais. Na visão budista, a nossa natureza pode se engajar em mundos desse tipo, que se assemelham a coisas reais, verdadeiras, mas são coisas parciais, limitadas. A loucura pertence aos mundos limitados, não pertence à dimensão livre da mente. Vocês vão ver que um dos sintomas da loucura é num jogo de futebol as pessoas trapacearem, por exemplo. Ou atingir violentamente um colega. Isso acontece.

Como a gente entra na roda da vida? A gente entra por três animais. O primeiro deles é o javali, que corresponde a nossa identidade. Se vocês olharem dentro deste javali, vão encontrar várias definições, diferentes pessoas vão se descrever de forma diferente. Uma das chaves da reflexão sobre isso é pensarmos: “Eu já me descrevi de vários modos e agora me descrevo desta forma, hoje. Mas no passado eu também acreditava que eu era aquilo que eu descrevia. Se eu não era aquilo e aquilo desapareceu, como é que eu tenho uma noção de continuidade”? O que nos dá esta sensação de poder dizer “no passado eu fiz isso, eu pensei que eu era aquilo, depois eu fiz aquilo”? Como é que tem alguma coisa contínua dentro disso? A gente deveria pensar sobre o que nos dá a sensação de continuidade no meio dessas experiências múltiplas.

Curiosamente, quando vocês tentarem ver que rosto vocês têm, alguns mestres trabalharam isso. Ramana Maharishi considerava este ponto central. Ele convidava os alunos a sempre perguntarem: quem sou eu? Era a pergunta básica dele. Então seria isso também. O que é contínuo dentro de uma multiplicidade de aparências? Os indianos gostam dessa coisa pictórica. Então vocês poderiam olhar para trás e ver rapidamente, assim, como se fosse um desenho, as múltiplas faces que vocês já tiveram em várias vidas, como se tivesse passando uma sucessão de fotografias na tela do computador. Aí vocês vão ver que foram cada uma dessas faces ao longo do tempo. O que dá a sensação de continuidade nisso? A gente não é nenhuma daquelas faces, nem a atual. Vocês vão procurar isso e não vão encontrar, porque não tem uma face. Vocês não vão encontrar um rosto ali. Todos eles são construídos.

O que vai nos dar a sensação de continuidade é o fato de que há algo que está além dos rostos. Esse algo que está além dos rostos não mudou em momento algum e é justamente a capacidade de produzir rostos.

A gente também pode pensar: mas de onde vem essa aparência que eu tenho? Estou descrevendo isso porque a essência da loucura é que ela é a loucura do personagem, não é a loucura dessa dimensão. Essa dimensão que traz a sensação de continuidade, que tem essa incessante presença, ela não entra em crise. No meio das crises ela vai também vai ser o processo que vai nos retirar da crise. Porque é dessa dimensão que vai vir outra identidade, ou vai brotar a capacidade de refletir sobre a natureza que está além das identidades.

O processo de lucidez que cura a aflição é o processo que nos permite tomar refúgio não em alguma identidade, não na sustentação da identidade que está em crise, mas nos permite tomar refúgio sereno, sem luta, na natureza que não pode ser derrubada, que é a natureza que sobreviveu àquela multidão de rostos, que foram trocando. Nós temos essa experiência longa de sobrevivência. Nós não somos nenhum desses rostos. Quando nós serenamos dentro desta natureza que está além dessas identidades, então isso é a lucidez. Essa lucidez nos retira da crise. Ela está sempre disponível. Se vocês forem olhar, ela não envelhece, tem essa vantagem. Não morre, não cria rugas, não empalidece, não tem olheiras. Não tem problema nenhum, não precisa de tratamento dentário, lipoaspiração, não precisa de nada, está lá. Espantoso, maravilhoso. É a base da nossa solidez, da nossa estabilidade.

doença mental

Foto Niels Steeman

Mas nós esquecemos isso e embarcamos na identidade. Quando a gente embarca na identidade, não basta a gente entender que ela não existe. Precisamos ver como isso se dá. As identidades são múltiplas, mas ainda assim todas elas têm o mesmo software por trás, o mesmo código-fonte. Para este código-fonte, na falta de um melhor exemplo, eu tenho usado a noção de um bambu que a gente tenta manter equilibrado a partir de uma ponta. É uma coisa interessante, eu acho que são os Guarani que chamam a pessoa, pessoa significa “flauta em pé”. Isso é muito interessante, não sei bem como é em Guarani o nome, outro dia estavam me falando sobre isso. “Flauta em pé”, acho que é porque flauta produz som, achei essa uma boa imagem. Então nós temos um bambu em pé. O que significaria esse bambu em pé? Eu peguei alguma coisa e agora estou equilibrando isso. Equilibrar alguma coisa dá a sensação de identidade. A essência da sensação de identidade é estarmos equilibrando alguma coisa. Ou seja, eu crio o bambu e quem vai ter o trabalho todo de sustentar o bambu é o galo, o segundo animal, que é a avareza. Mas não é propriamente a avareza, é o que sustenta a ação deste aspecto. Se vocês estão ouvindo uma música, por exemplo, vocês não percebem que se construíram dentro de uma identidade ilusória. Mas quando vocês estão acompanhando aquilo, se vem alguém e interrompe vocês, vocês têm a sensação de que precisam proteger aquilo que estavam fazendo. Aí surge o terceiro animal, a cobra.

Se pararem um pouquinho, talvez vocês cheguem à conclusão de que não tinha por que ouvir a música, não tinha nada muito especial nisso. Aliás, a pessoa que estava chegando para falar com vocês, isso sim tinha alguma coisa importante. Mas, como estamos na fixação daquele bambu a gente reluta e não abandona aquilo. A gente resiste. Aí vocês olham as crianças, é exatamente assim, é bonito de ver. Eles fazem descaradamente isso. Pegam alguma coisa, ficam com aquilo. Aquilo dá a sensação de existência para qualquer um. A pessoa fica com a sensação de existência a partir de algo assim. A gente pega aquela coisa e começa a fazer. Um jogo, um jogo simples. Aí nós ficamos presos àquele processo. Se alguém interromper aquilo, nós temos uma aflição.

A pergunta para nós mesmos, quando estamos em crise, isso quando no meio de uma crise a gente consegue pensar, seria: “Qual o bambu que nós estamos sustentando”? Nós temos vários bambus. Vocês vão ver que as identidades estão ali. O que nós estamos sustentando?

Se vocês não conseguem pensar o que nós estamos sustentando, pensem: “O que seria muito ruim se viesse a acontecer”? É a queda do bambu. Quando nós na região dos infernos podemos pensar: O medo vem daonde? O que produz medo em mim? De acordo com o medo, eu já sei: “O bambu caiu”. “Meu medo é que eu tenha dificuldades financeiras, que eu venha a adoecer, que a minha esposa vá embora, que as crianças vão morar com a ex-esposa”, uma tragédia. A pessoa vai ficar aflita com essas várias coisas. Isso significa o que? Que ela está equilibrando, querendo que os filhos fiquem consigo, querendo que o marido não vá embora, equilibrando a situação financeira, tentando manter um apartamento, ou não está querendo perder o emprego… muitas coisas! Os pneus do carro estão gastos – oh! Quando a gente está equilibrando para não gastar. Oh! Eu não queria gastar! Sempre equilibrando alguma coisa.

Eventualmente, nós começamos a convergir para algumas coisas. Essas coisas para as quais nós vamos convergindo vão se tornando cruciais. Numa guerra, é assim. Tem algumas coisas que a gente não vai permitir perder. Aí nós vamos não só tomar a violência como base, como nós vamos tomar uma violência estruturada e de preferência coletiva. Nós juntos vamos defender alguma coisa. Aí começa a guerra. É um tipo de loucura coletiva. As pessoas estão com uma fixação de um certo tipo.

Aquilo parece que tem lógica, parece que funciona, mobiliza coletivamente e parece natural. Parece normal, parece direito, mesmo que a gente tenha perseguições das pessoas num período de guerra, é muito espantoso. O Reich do Hitler era para mil anos. Aquilo não durou dez anos, mas a loucura se estabelece como se fosse absoluta, como se aquilo fosse sólido. As loucuras coletivas se estabelecem deste modo. Aquele discurso funciona para todos, aí quando termina, aquilo se rompe, dá um estrondo e a pessoa fica sem saber qual o seu referencial. Ela não está mais jogando aquele jogo, mas não sabe que jogo vai jogar.

Nós temos as loucuras individuais e as loucuras coletivas. Elas são baseadas nessa característica: quando a gente vê as pessoas desrespeitando os outros, passando por cima dos outros, isso já é o sinal da loucura. A pessoa se fixa em alguma coisa, ela já não vê o outro, só vê o outro como alguma coisa dentro da sua própria vida. Este é um sintoma.

Mas quando a pessoa está presa dentro disso, dizer isso não adianta. Ajuda um pouco para a pessoa contextualizar, mas aí vem a pergunta: “Do que você tem medo”? Quando a pessoa fala do que ela tem medo, imediatamente a gente vê qual é o bambu, o que a pessoa está sustentando. Ela mesma pode ver isso. Se ela entender os três animais, ela vê que está sustentando isso mas que poderia sustentar outra coisa que não isso. Ela pode se transferir para outra coisa. Mas se não conseguir se transferir, ela pode, por exemplo, entender a vacuidade deste personagem. Pode entender o aspecto luminoso deste personagem. Pode entender que ela constrói este personagem e sustenta.

Eventualmente, a pessoa entende que constrói o personagem e sustenta, mas ela não tem outro personagem que não aquele. Ela não está disposta a abandonar aquele personagem, ela está disposta a viver com ele até o fim. Aí a crise segue. A pessoa pode não conseguir transitar. Se ela conseguir transitar para outro personagem, para outra paisagem, aí ela ultrapassa a crise. Ou, no mínimo, é como se ela estivesse num rio de jacarés, pisando em cima de troncos. Então ela pula de um tronco para outro. O outro tronco, que também não é seguro, é outro personagem, num outro contexto, mas aparentemente aquilo funciona por um tempo.

Mas, não vai resolver. Por que? Porque os jacarés vão voltar, aquilo vai rodar e ela vai precisar se transferir para outro tronco. Então aquela multiplicidade de rostos que a gente viu corresponde à multiplicidade de troncos que a gente já pulou. Nós somos puladores de troncos e também seguradores de bambu. Estamos com nosso bambuzinho, como um garçom com a bandeja, pulando de um lado para o outro, e aquilo não cai. Milagrosamente não cai. Mas o software, o código-fonte por trás disso é o fato de que nós estamos sempre equilibrando alguma coisa. Isso é a roda da vida.”


Continuação da transcrição da palestra do Lama Padma Samten sobre as doenças mentais. Aqui estão a parte I e parte III da palestra.

O texto acima foi publicado originalmente em agosto de 2012, no site antigo da Bodisatva, por Miguel Berredo. Revisitado em novembro de 2017.


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6 Comentários

  1. Luciene Soares Cardoso disse:

    O Lama, nosso professor tem esta capacidade de nos abir para o ensinamento de uma forma tão lúdica e leve e ao mesmo tempo nos arranca de onde estamos pulando nossos troncos e equilibrando nossos bambus, uma pausa, para desejarmos o som mais precioso da mente búdica! Que a lucidez do Lama possa beneficiar a todos os seres neste mundo de sofrimento. Que eu alcance a lucidez para o benefício dos seres. Aguardo ansiosamente a terceira parte!

  2. nath disse:

    obrigada pelo esclarecimento, é sempre bom ouvir várias linhagens diferentes <3

  3. […] transcrição da palestra do Lama Padma Samten sobre as doenças mentais. Aqui estão a parte I, parte II e parte III da […]

  4. […] transcrição da palestra do Lama Padma Samten sobre as doenças mentais. Aqui estão a parte I, parte I, parte III e parte IV da […]

  5. SANDRA GREICE BECKER disse:

    Muito compreensível os ensinamentos, por meio da criatividade dos exemplos.

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