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Alegria Empática

Alegrando-se com a felicidade de outros


Por
Revisão: Helo Fiuza
Tradução: Jeanne Pilli

Em tempos de grande sofrimento, o ensinamento sobre o cultivo da alegria empática nos impede de afundar completamente na imobilidade do medo, da inveja e da dor. Neste texto inédito do Lama Alan Wallace, que chega ao Brasil, nesta quinta-feira (4), para oferecer retiro no CEBB Caminho do Meio (RS), ele nos ‘salva’ do desespero de uma compaixão meio desequilibrada neste tempo de crise. 

O trecho da Alegria Empática, cedido gentilmente pela editora Lúcida Letra, é um dos capítulos do livro “As Quatro Incomensuráveis – práticas para abrir o coração”, que será lançado no final deste mês, com tradução da nossa querida Jeanne Pilli. No budismo tibetano, as quatro incomensuráveis são: amor, compaixão, alegria empática e equanimidade.

O Lama Alan Wallace é um dos mais prolíficos autores e tradutores do budismo tibetano no Ocidente. Foi monge budista durante quatorze anos, nas décadas de 70 e 80. Mais tarde, recebeu o título de Ph.D. pela Universidade de Stanford e atualmente dirige o Instituto Santa Barbara para Estudos da Consciência. 


Dedicar-se à prática espiritual para cultivar quiescência meditativa e cultivar qualidades como bondade amorosa e compaixão é certamente uma busca que vale a pena. Ter ideais e objetivos pode dar inspiração, direção e coerência à vida de alguém, mas também pode levar à ambição e à frustração de não progredir o suficiente. Portanto, é bom equilibrar esse esforço com um aspecto da prática que nada tem a ver com metas e conquistas, e uma dessas práticas é o cultivo da alegria empática (muditā).

Este é simplesmente o ato de regozijar-se com o bem-estar dos outros. Fazemos isso frequentemente com os entes queridos, com nossos filhos e amigos queridos. Ver um cachorrinho brincando com uma bola, abanando o rabinho para lá e para cá, nos faz sorrir. Isso também é alegria empática. Não é uma técnica budista estranha que temos que aprender como algo totalmente novo. Há uma prática intimamente relacionada a essa, da tradição indo-tibetana, chamada regozijar-se com a virtude e suas consequências. Discutirei essa primeiro, separadamente, e depois veremos como elas podem facilmente convergir para uma única prática.

Foto de Maybe Tomorrow

Na tradição Theravāda, a prática da alegria empática é tão direta que é até difícil considerá-la uma prática. Mas, ainda assim, por que não? Comece trazendo à mente uma pessoa que você conhece e é muito alegre – uma pessoa que normalmente parece vibrante, vívida e feliz. Pode ser um amigo; pode ser um grande religioso, homem ou mulher. O Dalai Lama é um bom exemplo de alguém que é radiante e alegre quase todo o tempo. Você também pode escolher uma pessoa conhecida ou um colega. Se você não conhece nenhuma pessoa assim, vou ter que lhe apresentar algumas! Traga uma pessoa à mente bem vividamente e reflita sobre as qualidades da sua vida, a leveza e o bom humor que essa pessoa traz para o lugar onde está e para outras pessoas. Então, empaticamente, compartilhe dessa mesma alegria, regozije-se, aprecie essa qualidade.

Inicie a prática dessa maneira, permanecendo em contato com essa alegria de modo bem relaxado. Esta prática não tem estágios a serem alcançados; você apenas desfruta dela! Se desejar avançar na prática, depois de contemplar uma pessoa naturalmente alegre, passe para uma pessoa neutra e, finalmente, direcione sua atenção para uma pessoa hostil. Traga à mente ocasiões em que essa pessoa hostil parecia realmente feliz e, se puder compartilhar alegremente da felicidade dessa pessoa – mesmo que essas ocasiões tenham sido muito raras – sentirá uma verdadeira transformação na mente. Claro que, mesmo se tratando de uma pessoa hostil, buscamos uma situação de felicidade que seja virtuosa ou pelo menos neutra. Há pessoas que se deleitam em infligir sofrimento aos outros; isso não é uma alegria com a qual desejamos cultivar empatia.

Por fim, você pode expandir a prática bem amplamente: onde quer que haja felicidade, você se alegra. É uma prática muito simples. Pouco precisa ser dito, mas isso não quer dizer que não seja significativa ou valiosa, especialmente na vida cotidiana. Eu, por exemplo, assisto regularmente as notícias para ver como anda o mundo. É possível praticar todas as Quatro Incomensuráveis durante o noticiário, dependendo do que é apresentado. Quando vejo alguém realmente lutando pela felicidade, a resposta é bondade amorosa; quando vejo alguém em desespero ou se envolvendo com o mal, a resposta é compaixão. Felizmente, existem alguns programas de notícias que encerram com algo virtuoso, e, nessas ocasiões, faço questão de regozijar-me quando eles focam alguma virtude. Essa é a minha hora de praticar alegria empática. Quer seja lendo jornais ou ouvindo uma história de um amigo, ouvindo as últimas travessuras de nossos políticos e assim por diante, é sempre possível responder de uma dessas quatro maneiras, em vez responder com pessimismo, desprezo, aversão e desespero, as outras “quatro incomensuráveis”.

O “inimigo próximo” de qualquer uma das Quatro Incomensuráveis no Budismo é um estado mental que pode surgir por engano quando você está praticando. O inimigo próximo pode ter algumas qualidades em comum com a qualidade que você deseja cultivar mas, na verdade, é bem diferente e levará você para outra direção. O inimigo próximo da alegria empática é a frivolidade. Ela não causa tanto mal, mas não tem a profundidade e não traz o benefício da alegria empática genuína. O “inimigo distante” é a combinação de pessimismo e desespero. Assim como a crueldade é o oposto da compaixão e a hostilidade é o oposto da bondade amorosa, não há possibilidade dessa mistura de pessimismo e desespero estarem presentes simultaneamente à alegria empática. Eles são mutuamente excludentes. Em The Path of Purification, é dito que o inimigo distante da alegria empática é a aversão e o tédio. Acredito que estes são parentes próximos do pessimismo e do desespero.

Regozijando-se na virtude

A tradição budista tibetana também fala de alegria empática, mas coloca mais ênfase em regozijar-se na virtude, que é a raiz da felicidade. Eles dizem que esse é um antídoto direto para a inveja, já que a inveja é a incapacidade de suportar a felicidade e o sucesso de outra pessoa. Note que, na prática Theravāda, o primeiro passo é se concentrar em uma pessoa alegre que não seja você mesmo. Na prática budista tibetana de regozijar-se na virtude, é perfeitamente apropriado começar por você mesmo. Essa é uma prática tremendamente rica e muito simples. Não existe a noção de realização, você apenas faz a prática e se beneficia imediatamente.

Regozijar-se, especialmente em relação às nossas próprias virtudes, implica olhar para trás, para nosso próprio comportamento, nossas aspirações e anseios e, em seguida, fazer uma pausa e apenas alegrar-se quando notar que são de natureza virtuosa. Talvez você tenha praticado meditação com uma motivação pura e tenha se beneficiado com isso. Em vez de apenas seguir em frente, tome consciência da sua prática passada, reconheça que fez algo bom e delicie-se com isso.

Foto de Vita Marija Murenaite

Ao atentar-se às suas aspirações virtuosas, ações e seus resultados, você não pensa: “Sou realmente uma pessoa fantástica; provavelmente sou muito melhor do que a maioria das outras pessoas.” Esse é o inimigo próximo de regozijar-se em virtude: autoadulação, arrogância e presunção. O erro se dá através de um processo de reducionismo, em que você esquece todas as causas e condições que foram reunidas para fazer a virtude acontecer. Imagine se depois de um excelente retiro, em que surgiram muitos insights, você sair pensando: “Eu sou demais! Aposto que ninguém praticou tão bem. Na verdade, eu deveria ser professor.” Quando isso acontece, você está ignorando o contexto em que suas experiências surgiram: a ajuda do professor, o apoio dos outros praticantes e tudo o mais. Você reificou a si mesmo e isso é um problema.

O verdadeiro regozijo nas próprias virtudes é profundamente diferente: é sempre contextualizado. Se, por exemplo, você fez um bom retiro ou se precisou sair do seu caminho para prestar um serviço, sua atenção abrange o contexto, incluindo as pessoas que o ajudaram e o inspiraram em sua busca pela excelência. Dentro desse contexto, você se deleita com a ação e com o evento. Dessa forma, sua alegria é tão limpa quanto um assobio.

Esse próprio ato de regozijar-se atua como uma inspiração para impulsionar sua prática. Pode acontecer de você olhar para trás depois de alguns meses ou anos de prática de meditação e notar: isso costumava ser terrivelmente difícil, mas agora não é mais. Você pode achar que a prática da bondade amorosa era ineficaz quando você começou e agora – veja só – a bondade amorosa, de fato, brota da sua prática. Onde notarmos alguma melhora, alguma transformação acontecendo, podemos nos alegrar, reconhecer, prestar atenção, fazer com que esse avanço faça parte de nossa realidade. Isso pode servir de base para algum grau de confiança, ao sentirmos que nossa própria capacidade também pode ajudar a minar a inveja. E, é claro, que esse tipo de alegria também é um antídoto direto contra a autodepreciação.

Mas não pare por aí. Tenha em mente que a habilidade na meditação é apenas um aspecto da prática espiritual. Também vale a pena se alegrar com sua prática de disciplina ética. Olhando retrospectivamente para sua vida, se você puder reconhecer sua esperteza no sarcasmo, no insulto e na calúnia, mas que não age mais assim, isso é um grande progresso. É uma grande conquista. Alegre-se!

Da mesma maneira que você reflete sobre sua própria prática, seja de disciplina ética, samādhi, sabedoria ou compaixão, também pode observar a prática dos outros. Quando souber que alguém está indo muito bem, faça uma pausa e alegre-se com isso. Esse é um antídoto direto para a inveja. Essa é uma prática excelente para quem tem um modo ativo de vida. Há inúmeras situações, tanto na mídia quanto em nossa experiência pessoal, que facilmente despertam tristeza ou pesar; por isso, sempre que se deparar com alguma virtude, note esses pontos brilhantes e convide-os a fazer parte da sua realidade. Dar-nos permissão para nos regozijarmos com a virtude pode ser uma verdadeira fonte de inspiração. Especialmente como uma prática engajada com o mundo; ela é muito, muito útil.

Você pode começar essa prática com a abordagem ensinada na tradição Theravāda, trazendo à mente primeiramente uma pessoa alegre; depois, uma pessoa neutra e, em seguida, se possível, uma pessoa hostil. Não faça essa progressão muito rapidamente; não desejamos cultivar a hipocrisia.

Outro caminho é simplesmente fazer uma pausa e olhar para a sua vida. Comece assim e pergunte se existe alguma virtude presente neste momento, qualquer coisa significativa. Se houver, note e alegre-se. Em seguida, tomando a si mesmo como exemplo, estenda essa prática aos outros: como é para mim, que seja assim para você. Alegre-se com a felicidade dos outros, bem como com qualquer esforço que eles estejam fazendo para semear as causas de sua felicidade no futuro.


Agradecimento especial: Jeanne Pilli e editora Lúcida Letra


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