Bodhicitta: A Perfeição do Coração Desperto

A mente da iluminação está sempre disponível e Pema Chodrön explica como cultivar esse ponto fraco de bravura e gentileza.


Por
Tradução: Alessandra Granato

“Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos”

Antoine de Saint Exupéry

Quando eu tinha em torno de 6 anos de idade, recebi o ensinamento de Bodhicitta essencial de uma mulher mais velha sentada ao sol. Eu estava caminhando em frente à sua casa – me sentindo sozinha, sem ser amada e irritada, chutando qualquer coisa que via pela frente. Sorrindo, ela me disse: “Menina, você não vai deixar a vida endurecer o seu coração, não é!?”

Naquele momento, eu recebi essa instrução fundamental: nós podemos deixar as circunstâncias da vida nos endurecer tanto que nos tornamos progressivamente rancorosos e com medo, ou podemos deixar que as mesmas circunstâncias nos amoleçam e nos tornem gentis e mais abertos para o que nos assusta. Nós temos sempre essa escolha.

Se perguntássemos ao Buda “O que é Bodhicitta?”, ele provavelmente nos diria que essa palavra é mais fácil de entender do que de traduzir. Ele nos encorajaria a buscar por aí maneiras de encontrar o seu significado em nossa própria vida. Ele poderia ainda nos provocar acrescentando que apenas Bodhicitta é capaz de curar e transformar o mais duro dos corações e as mentes mais preconceituosas e amedrontadas.

Chitta significa “mente” e também “coração” ou “atitude”. Bodhi significa “desperto”, “iluminado” ou “completamente aberto”. Em alguns momentos, a mente e o coração completamente abertos de Bodhicitta são chamados de ponto fraco, um lugar tão vulnerável e terno como uma ferida aberta. Ele está relacionado, em parte, à nossa habilidade de amar. Mesmo as pessoas mais cruéis possuem esse ponto fraco. Mesmo os animais mais perversos amam sua prole. Chögyam Trungpa Rinpoche uma vez disse: “Todo mundo ama alguma coisa, mesmo que seja apenas tortillas.”

Bodhicitta está também relacionado, em parte, à Compaixão – nossa habilidade de sentir a dor que compartilhamos com os seres.  Se não nos damos conta disso, acabamos constantemente nos protegendo dessa dor porque ela nos assusta. Nós erguemos muros protetores feitos de opiniões, preconceitos e estratégias – barreiras que construímos com base no medo profundo que temos de sermos machucados. Esses muros seguem sendo fortificados por emoções de todos os tipos: raiva, desejo, indiferença, ciúmes e inveja, arrogância e orgulho. Mas, felizmente para nós, o ponto fraco – nossa habilidade inata de amar e cuidar – funciona como uma rachadura nesses muros que erguemos. É uma abertura natural nessas barreiras que criamos quando estamos com medo. Com a prática, podemos aprender a encontrar essa abertura. Podemos aprender a aproveitar esses momentos vulneráveis – de amor, gratidão, solidão, vergonha e inadequação – para despertar Bodhicitta.

Uma analogia para Bodhicitta é a ingenuidade de um coração partido. Em alguns momentos esse coração partido pode dar origem à ansiedade e ao pânico; outras vezes, à raiva, rancor e culpa. Mas sob a dureza dessa armadura, existe a ternura de uma tristeza autêntica. Algo que nos conecta com todos os seres que já amaram. Esse autêntico coração de tristeza pode nos ensinar imensa compaixão. Pode nos tornar mais humildes quando formos arrogantes e nos amolecer quando formos rudes. Esse coração nos acorda quando preferimos dormir e caminha através da nossa indiferença. Essa dor contínua do coração é uma benção que, quando aceita completamente, pode ser compartilhada com todos.

Buda disse que nós não estamos nunca separados da iluminação. Mesmo nos momentos em que nos sentimos emperrados, não estamos nunca alienados desse estado desperto.

Essa afirmação é revolucionária. Mesmo pessoas comuns como nós, com nossas neuroses e confusões, possuem essa mente da iluminação chamada Bodhicitta. A abertura e o calor de Bodhicitta é, de fato, a nossa verdadeira natureza e condição. Mesmo quando nossas neuroses superam de longe a nossa sabedoria, mesmo quando nos sentimos na maior parte do tempo confusos e sem esperanças, Bodhicitta – assim como o céu amplo – está sempre lá, nunca diminuído pelas nuvens que temporariamente a cobrem.

Por termos tanta familiaridade com as nuvens, podemos achar difícil acreditar nesses ensinamentos de Buda. Ainda assim, a verdade é que no meio do nosso sofrimento, nos momentos mais duros, podemos entrar em contato com esse coração nobre de Bodhicitta. Esse coração está sempre disponível, tanto na dor como na alegria.

Uma jovem me escreveu relatando sobre estar em uma cidade pequena no Oriente Médio rodeada de pessoas zombando, gritando e ameaçando arremessar pedras nela e em suas amigas porque eram norte-americanas. É claro que ela estava aterrorizada, mas o que aconteceu com ela em seguida é interessante. De repente, ela se identificou com todas as pessoas ao longo da história que já foram desprezadas e odiadas. Naquele momento, ela entendeu como era ser desprezada e ofendida por qualquer razão: grupo étnico, origem racial, preferência sexual, gênero. Algo fez abrir uma grande rachadura em seu coração e ela se viu no lugar de milhares de pessoas oprimidas e enxergou sob uma nova perspectiva. Ela até entendeu sua humanidade compartilhada com aqueles que a odiavam. Esse senso de conexão profundo, de pertencimento a uma mesma família, é Bodhicitta.

Bodhicitta existe em dois níveis. Primeiro, existe a Bodhicitta incondicional, uma experiência imediata que é refrescantemente livre de conceitos, opiniões e nosso usual apego. É algo imensamente bom que não conseguimos nem um pouco concluir, algo como saber com todo o seu ser que não há absolutamente nada a perder. Segundo, existe a Bodhicitta relativa, nossa habilidade de manter nossos corações e mentes abertos ao sofrimento sem se abater.

Aqueles que treinam com todo o coração para despertar Bodhicitta incondicional e relativa são chamados de bodhisattvas ou guerreiros – não são guerreiros do tipo que matam e machucam mas, sim, guerreiros da não-violência que escutam o choro do mundo. Eles são homens e mulheres que estão dispostos a treinar no meio do fogo. Treinar no meio do fogo porque os guerreiros-bodhisattvas são capazes de encarar situações desafiadoras a fim de aliviar o sofrimento.  Treinar no meio do fogo também se refere à sua vontade de reduzir a reatividade pessoal e o autoengano, bem como sua dedicação ao reconhecimento da energia básica e não distorcida de Bodhicitta. Temos muitos exemplos de mestres guerreiros – pessoas como Madre Teresa e Martin Luther King – que reconheceram que o maior dano vem da nossa própria mente agressiva. Eles dedicaram suas vidas para ajudar outros seres a entender essa verdade. Existem também muitas pessoas comuns que passam a vida treinando abrir seus corações e mentes a fim de ajudar outros seres a fazerem o mesmo.  Assim como eles, podemos aprender a nos relacionar conosco e com o mundo como guerreiros. Podemos treinar em despertar nossa coragem e amor.

Existem métodos formais e informais que nos ajudam a cultivar essa valentia e bondade. Existem práticas que nutrem a nossa capacidade de apreciar, soltar, amar e derramar uma lágrima. Existem aquelas que nos ensinam estar abertos à incerteza. Existem ainda outras que nos ajudam a estar presentes em momentos que normalmente nos desligamos.

Aonde quer que estivermos, podemos treinar como guerreiros. As práticas de meditação, bondade-amorosa, compaixão, alegria e equanimidade são as nossas ferramentas. Com a ajuda dessas práticas, podemos revelar o ponto fraco de Bodhicitta. Nós encontraremos essa ternura na tristeza e na gratidão. Nós a encontraremos por trás da dureza da raiva e no tremor do medo. Ela está tanto disponível na solidão como na bondade.

Muitos de nós preferem práticas que não nos causem desconforto e, ao mesmo tempo, queremos ser curados. Mas o treinamento em Bodhicitta não funciona desse jeito. Um guerreiro aceita que nunca saberá o que vai acontecer em seguida. Podemos tentar controlar o incontrolável na busca por segurança e previsibilidade, na esperança de estar sempre confortável e seguro. Mas a verdade é que nunca evitaremos a incerteza. Esse não saber é parte da aventura e é, também, o que nos dá medo.

Foto de Tatiana

O treinamento em Bodhicitta não oferece promessas de finais felizes. Ao invés disso,  esse “eu” que quer encontrar segurança – que quer algo para se segurar – pode finalmente aprender a crescer. A questão central do treinamento do guerreiro não é como evitar a incerteza e o medo, mas como se relacionar com o desconforto. Como nós praticamos com as dificuldades, com nossas emoções, com os encontros imprevisíveis do nosso cotidiano?

De um modo bem frequente, nós nos relacionamos como passarinhos tímidos que não ousam deixar o ninho. Ficamos aqui sentados em um ninho que está se tornando fedorento e que não funciona há muito tempo. Não chega mais ninguém para nos alimentar, ninguém para nos proteger e nos manter aquecidos. E, mesmo assim, continuamos aqui esperando a mãe-pássaro chegar.

Poderíamos nos fazer um grande favor e, finalmente, sair desse ninho. Esse movimento requer coragem, é claro. Também está claro que podemos usar algumas dicas valiosas. Pode ser que tenhamos dúvidas se estamos prontos para ser um guerreiro em treinamento. Nesse momento, podemos nos perguntar “Eu prefiro crescer e me relacionar com a vida diretamente ou eu escolho viver e morrer no medo?”

Todos os seres têm a capacidade de sentir ternura – de experimentar um coração partido, a dor e a incerteza. É assim que o coração iluminado de Bodhicitta está disponível para todos nós.

O professor de meditação de insight Jack Kornfield conta sobre testemunhar isso no Camboja durante o período do Khmer vermelho. Cinquenta mil pessoas estavam na mira de armas de comunistas, ameaçadas de morte se continuassem suas práticas budistas. Apesar de todo esse perigo, um templo foi construído em um campo de refugiados e vinte mil pessoas compareceram a cerimônia de abertura. Não houve palestras ou preces, simplesmente um canto contínuo de um dos ensinamentos de Buda:

 O ódio nunca cessa pelo ódio
Mas somente pelo amor é curado.
Esta é uma lei antiga e eterna.

Milhares de pessoas cantavam e choravam, sabendo que a verdade nessas palavras era ainda maior do que o sofrimento que elas sentiam.

Bodhicitta tem esse poder. É capaz de nos inspirar e nos apoiar nos momentos bons e ruins. É como descobrir uma sabedoria e coragem que nem mesmo sabemos que temos. Assim como a alquimia é capaz de tornar qualquer metal em ouro, Bodhicitta pode – se permitirmos – transformar qualquer atividade, palavra ou pensamento em veículo para despertar nossa compaixão.

Em uma ocasião, o Buda reuniu seus estudantes em um lugar chamado montanha do Pico dos Abutres. Ali, ele ofereceu alguns ensinamentos revolucionários – ensinamentos sobre a dimensão aberta e ausente de bases do nosso ser – conhecidos tradicionalmente como shunyata, Bodhicitta incondicional ou prajnaparamita.

O Buda já vinha ensinando sobre a ausência de chão há um tempo. Muitos dos estudantes reunidos ali na montanha do Pico dos Abutres já tinham uma percepção profunda da impermanência e da ausência de ego, a verdade que nada – incluindo nós mesmos – é sólido ou previsível. Eles entendiam que o sofrimento é resultado do apego e da fixação. Eles já haviam aprendido isso diretamente do Buda; eles haviam experimentado a profundidade desses ensinamentos na meditação. Mas o Buda sabia que nossa tendência a procurar um chão sólido tem raízes profundas. O ego é capaz de usar qualquer coisa para manter a ilusão da segurança, incluindo a crença na insubstancialidade e na impermanência.

Foi aí que o Buda fez algo chocante. Ele puxou completamente o tapete com os ensinamentos de prajnaparamita (perfeição da sabedoria incondicional), levando os seus estudantes para além mesmo da ausência de chão. Ele disse aos que o escutavam que qualquer que seja a crença a qual eles se agarravam, eles tinham que soltar – que insistir em qualquer descrição da realidade era uma armadilha. Essas não eram notícias confortáveis de serem ouvidas.

Esse trecho me faz lembrar da história de Krishnamurti, que foi educado pelos teosofistas para ser um avatar. Os anciões dessa tradição diziam constantemente aos estudantes que, quando um avatar se manifestasse plenamente, seus ensinamentos seriam eletrizantes e revolucionários, sacudindo as próprias estruturas de suas crenças. Isso acabou sendo verdade, mas não exatamente do jeito que eles tinham imaginado. No momento em que Krishnamurti finalmente tornou-se líder da Ordem da Estrela do Oriente, ele convocou uma reunião com toda a sociedade e, oficialmente, a dissolveu, dizendo que a Ordem era prejudicial pois lhes fornecia demasiado chão.

A experiência do Pico dos Abutres foi algo similar para os estudantes de Buda. Ela eliminou todas as suas concepções existentes sobre a natureza da realidade. A principal mensagem do Buda nesse dia foi que segurar-se ao que quer que seja bloqueia a sabedoria. Qualquer conclusão que possamos tirar deve ser deixada de lado. O único jeito de compreender totalmente os ensinamentos de Bodhicitta, o único jeito de praticá-los em sua plenitude, é habitar na abertura incondicional de prajnaparamita – pacientemente eliminando todas as nossas tendências de nos segurarmos em algo.

Durante esses ensinamentos, conhecidos como o Sutra do Coração, o Buda em si não disse uma palavra. Ele entrou em um estado de meditação profundo e deixou que o bodhisattva da compaixão, Avalokiteshvara, se pronunciasse. Esse guerreiro corajoso, também conhecido como Kuan-yin, expressou a sua experiência de prajnaparamita em nome do Buda. Sua compreensão não era baseada no intelecto mas em sua prática. Ele viu nitidamente que tudo é vazio. Nesse momento, um dos principais discípulos de Buda, um monge chamado Shariputra, começou a questionar Avalokiteshvara. Aqui está um ponto importante – mesmo que um grande bodhisattva estivesse ensinando e o Buda estivesse claramente no comando, o significado profundo apenas emergiu por meio do questionamento. Nada foi tomado complacentemente ou com base em uma fé cega.

Shariputra é um modelo de estudante para nós. Ele não estava disposto a apenas aceitar o que ele ouviu; ele queria saber por si mesmo o que era verdade. Então, ele perguntou para Avalokiteshvara: “Como eu aplico prajnaparamita em todas as palavras, ações e pensamentos de minha vida? O que é essencial para o treinamento dessa prática?  Qual é a visão que eu preciso ter?”

Avalokiteshvara respondeu a essas perguntas com um dos paradoxos mais famosos do budismo: “Forma é vazio, e vazio também é forma. Vazio não é nada além de forma, forma não é nada além de vazio”. Na primeira vez que ouvi isso, eu não tinha a menor ideia do que ele estava falando. Minha mente ficou completamente em branco. Essa explicação, assim como o prajnaparamita em si, é inexpressível, indescritível, inconcebível. Forma é algo que simplesmente é antes de projetarmos nossas crenças nela. Prajnaparamita representa uma visão completamente fresca, uma mente irrestrita onde tudo é possível.

Prajna é a expressão sem filtro de ouvidos abertos, olhos abertos e uma mente aberta que existem em cada ser vivo. Thich Nhat Hanh traduz essa palavra como “entendimento”. É um processo fluido, e não algo definido, preciso e concreto que pode ser resumido ou medido.

Prajnaparamita e sua inexprimibilidade é a nossa experiência humana. Ela não é particularmente considerada como um estado pacífico ou perturbado da mente. É um estado de inteligência básica que é aberto, questionador e livre de tendências. Se esse estado se manifesta na forma de curiosidade, perplexidade, espanto ou relaxamento não é exatamente a questão. Nós o treinamos quando somos pegos de surpresa e quando a nossa vida está suspensa no ar.

Nós treinamos, como Trungpa Rinpoche dizia, no “não ter medo de se sentir um bobo”. Nós cultivamos através de uma relação simples e direta com o nosso ser – sem filosofar, moralizar ou julgar. O que quer que surja na nossa mente é trabalhável.

Então, quando Avalokiteshvara diz “Forma é vazio”, ele está se referindo a essa relação simples e direta com a experiência imediata – o contato direto com o sangue e o suor e as flores; com o amor assim como com o ódio. Primeiro, nós eliminamos as nossas preconcepções e, então, temos que soltar até mesmo a nossa crença de que devemos olhar para as coisas sem preconcepções. Nós continuamos puxando o nosso tapete. Quando nós percebermos a forma como vazio, sem barreiras ou véus, entenderemos a perfeição das coisas do jeito que elas são. É possível que alguém se vicie nessa experiência. Ela pode nos dar um senso de liberdade a partir da ambiguidade das nossas emoções e da ilusão de que poderíamos sobrevoar acima da bagunça de nossas vidas.

Mas a parte “Vazio também é forma” vira a mesa. O vazio constantemente se manifesta como guerra e paz, como luto e nascimento, como envelhecimento, doença e morte, assim como alegria. Somos desafiados a manter contato com o fato de que estar vivo tem é tamb´me estar com o coração à flor da pele. Essa é a razão pela qual treinamos nas práticas das quatro incomensuráveis e de tonglen, que se referem à Bodhicitta relativa. Elas nos ajudam a nos engajarmos plenamente na vivacidade da vida com uma mente aberta e límpida. As coisas não são tão ruins ou tão boas quanto parecem. Não existe a necessidade de alterar nada.

Foto de Johannes Plenio

Imagine um diálogo com o Buda – ele pergunta: “Como você percebe a realidade?” e nós respondemos honestamente: “Eu percebo a realidade separada de mim e sólida”. Ele diz, “Não, olhe com mais profundidade”.

Então, saímos, meditamos e contemplamos com sinceridade essa questão. Nós retornamos até o Buda e dizemos: “Agora, eu sei a resposta. A resposta é que nada é sólido, tudo é vazio.” E, ele diz, “Não, olhe com mais profundidade”. E retrucamos “ Bom, isso é impossível. Só pode ser essa ou aquela resposta: vazio ou não vazio, certo!?”. E, ele diz, “Não”. Se fosse o nosso chefe talvez não íamos nos importar, mas é o Buda, então pensamos “Talvez eu tenha que ficar aqui um pouco mais e ir mais além com a irritação que estou sentindo por ele não ter me dado nenhuma satisfação”.

Voltamos a meditar e a contemplar essa questão; discutimos ela com os nossos amigos. Da próxima vez que vemos o Buda, dizemos: “Acho que posso responder à sua pergunta. Todas as coisas são vazio e não vazio ao mesmo tempo”. E, ele diz, “Não”. Acredite em mim, nesse momento estaremos nos sentindo completamente sem chão, chacoalhados. É desconfortável não poder ter uma base sob nossos pés. Mas o processo aqui é de desmascarar – mesmo que estejamos irritados e ansiosos, estamos nos movendo mais próximos de enxergar a natureza verdadeira e não-fixada da mente. Já que “Não” é tudo que recebemos do Buda, vamos para casa e passamos o ano inteiro tentando responder esse enigma. É como um koan zen.

Eventualmente, retornamos e dizemos: “Tudo bem. Existe apenas mais uma possibilidade de resposta. A natureza da realidade é que ela existe e não existe ao mesmo tempo. Não é forma, nem vazio.” E até nos sentimos bem! É uma linda resposta sem chão. Mas o Buda diz: “ Não, esse é um entendimento muito limitado.” Talvez nesse momento o seu “Não” seja um choque tão tremendo que experienciamos a mente completamente aberta de prajnaparamita – a mente que se satisfaz com nenhum lugar onde repousar.

Depois que Avalokiteshvara disse a Shariputra que “forma é vazio; vazio também é forma”, ele foi mais além, apontando que não existe nada – nem mesmo os ensinamentos do Buda – no que se segurar: não há três marcas da existência, nem sofrimento ou fim do sofrimento, não há aprisionamento, nem liberação. A história continua até que muitos dos estudantes, de tão perplexos com esses ensinamentos, tiveram ataques cardíacos. Um professor tibetano sugeriu que o mais provável é que esses estudantes simplesmente levantaram-se e foram embora. Assim como na história dos teosofistas com Krishnamurti, eles não queriam ouvir aquelas coisas. Assim como nós não queremos. Nós não gostamos de ter nossos pressupostos básicos desafiados. É muito assustador.

Se esses ensinamentos tivessem vindo apenas de Avalokiteshvara, os estudantes teriam sido capazes de racionalizar os seus medos. “Ele é apenas um guerreiro do caminho, não é muito diferente de nós. Ele é obviamente muito sábio e compassivo, mas ele é conhecido por entender as coisas de forma errada”. Mas o Buda estava sentado ali em profunda meditação, claramente satisfeito com a sua exposição de como permanecer em prajnaparamita. Não tinha como escapar desse dilema.

Então, inspirado pelos questionamentos de Shariputra, Avalokiteshvara continuou. Ele ensinou que quando entendermos que não há uma realização final, não existe uma resposta definitiva ou um ponto de chegada, quando nossa mente estiver livre de guerrear com as emoções e da crença na separatividade, então nós não teremos mais medo. Quando eu escutei esses ensinamentos há muitos anos atrás, antes mesmo de eu ter algum interesse no caminho espiritual, uma pequena lâmpada se acendeu: Eu definitivamente queria saber mais sobre a “ausência de medo”.

Essa instrução em prajnaparamita é um ensinamento sobre o destemor. Quanto mais pararmos de lutar contra a incerteza e a ambiguidade, mais dissolveremos o nosso medo.  O sinônimo de destemor total é completa iluminação – a integração da mente e do coração abertos com o nosso mundo. Enquanto isso, nós treinamos pacientemente em nos mover nessa direção. Aprendendo como relaxar na ausência de chão, nós gradualmente nos conectaremos com a mente que conhece a ausência de medo.

Avalokiteshvara proclamou, então, o ponto principal de prajnaparamita, a essência da experiência de ter o tapete puxado, a essência do estado de mente destemida e aberta. Isso veio em forma de um mantra: “OM GATE GATE PARAGATE PARASAMGATE BODHI SVAHA”. Assim como uma semente contém uma árvore, esse mantra contém os ensinamentos completos em permanecer em prajnaparamita, em habitar no estado de destemor.

A tradução de Trungpa Rinpoche é “OM ter ido, ido, ido além, ter ido completamente além, acordado, assim seja”. Essa é a descrição de um processo, uma jornada de sempre seguir mais e mais. Poderíamos também dizer “OM ausência de chão, ausência de chão, mais ausência de chão, ainda mais além na ausência de chão, completamente acordado, assim seja”.

Não importa onde estejamos no caminho do bodhisattva, se estamos apenas no começo ou se já praticamos por anos, nós estamos sempre seguindo além na ausência de chão. A iluminação não é o fim de nada. A iluminação, ou estar completamente acordado, é apenas o início da imersão completa no que não sabemos.

Quando o grande bodhisattva acabou os seus ensinamentos, Buda voltou da sua meditação e disse “Bom, bom! Você expressou isso perfeitamente, Avalokiteshvara”. E aqueles ouvintes, que não tinham ido embora ou morrido de ataque cardíaco, alegraram-se. Ele se alegraram ao escutar esse ensinamento sobre caminhar além do medo.


Este trecho foi traduzido do inglês para o português por Alessandra Granato exclusivamente para a Bodisatva, mas pode ser encontrado no livro “Os lugares que nos assustam: Um guia para despertar nossa coragem em tempos difíceis”, de Pema Chodron. Editora Sextante, 2003.


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9 Comentários

  1. PAULO FARIA disse:

    Gratidão a Todos os que fizeram este precioso ensinamento chegar a m.

  2. Tiago disse:

    Muito obrigado …
    Que todos os seres se beneficiem

  3. Rogerio disse:

    Gratidão, esclarecedor.

  4. Maria Adela Aedo Mangoni disse:

    Gratidão pelo tempo dedicado neste texto cheio de essência para o Ser

  5. Kleber disse:

    gratidão 🙏
    que possamos despertar nosso Buda

  6. Cláudia Laux disse:

    Maravilhoso ensinamento. Sempre atual e vivo.
    Apenas uma sugestão a nível de linguagem: trocar ” houveram” por ” houve”. Sempre singular nesta expressão. Gratidão

  7. milton eiti sato disse:

    Obrigado. Excelente. Assim é, assim é.

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