Foto: Mongabay

As vozes das tradições se levantam

Lideranças religiosas de diferentes tradições reagem diante da emergência climática



Recentemente, nós da Bodisatva nos deparamos com um impactante texto, compilado por Tanissara Mary Weinberg da Sacred Mountain Sangha, um centro de retiro nos Estados Unidos inspirado no budismo Theravada e Mahayana. O texto, cujo título é “Declarar emergência climática já” foi publicado, entre outros meios, na newsletter de Joanna Macy, a ativista ambiental cujas ideias influenciaram fortemente a linha editorial da Bodisatva 31 – O tempo da Grande Virada

Com um tom de manifesto, o grande propósito do texto é que nós, especialmente aqueles que se dizem praticantes budistas, tenham clareza sobre o processo de degradação e destruição que está em curso nosso planeta. Seus autores convidam praticantes e outras sangas a declarar o que tem sido nomeado não mais de “crise ecológica” ou “mudança climática”, mas de “emergência climática”, uma expressão mais fiel à situação que está diante de nós. Apesar de descrever sem suavidade o terreno, o convite do texto é que essa declaração não seja simplesmente um grito de protesto mas uma ação de diálogo “com pessoas próximas e com a comunidade que nos rodeia para se expandir a instituições, empresas e governo”. Em linhas gerais, o texto nos informa sobre a gravidade da situação e nos convida a uma série de práticas – individuais e coletivas.

O texto da Sacred Mountain nos serviu como gatilho para uma pergunta que, acreditamos, pode ampliar a forma como olhamos para a “crise”: Como nós podemos ter uma postura de paz diante do tema da emergência climática? Como podemos pensar, sentir e agir para o benefício do planeta e ao mesmo tempo sustentar a visão de que não há inimigos? Decidimos levar nossa questão a dois diferentes ambientes: primeiro à fizemos a Kaz Tanahashi Sensei, que nos respondeu por email desde sua casa em Berkeley; depois a levamos a diferentes lideranças religiosas e ambientalistas conselheiros do projeto Fé no Clima, que se encontraram em julho, no Rio de Janeiro.  

A visão de Kaz Sensei

Quando em sua visita ao Brasil em junho de 2018, Kaz Sensei nos surpreendeu com suas falas e seu acúmulo de experiência em um ativismo a partir de uma visão de paz. Foi isto que nos levou a entender que sua visão poderia nos ajudar a evitar que nós, em nossa intenção de reverter o desastre em curso, simplesmente seguíssemos a tendência de apontar culpados e inimigos. 

E a resposta de Kaz Sensei para nós começou assim: 

“A terra é um navio naufragando. Nós, humanos, assim como todas as espécies, estamos a bordo. Não podemos mais ser egoístas, buscando pelo lucro próprio e por interesses nacionais. Precisamos de um milagre. O milagre é que nós todos façamos com que o salvamento desse navio seja a nossa prioridade. Precisamos de muita paz: um mundo sem mais guerras e sem mais violência sistemática. Precisamos resolver todos os problemas de forma não-violenta e sustentável.”

A imagem de um planeta naufragando, descrita por este mestre de mais de oitenta anos, difere da de Greta Thunberg, a ativista de 16 anos que tem liderado um movimento global de conscientização sobre a emergência climática, apenas na escolha do elemento que a compõe. Kaz fala a partir do elemento água, Greta fala a partir do elemento fogo: Eu quero que vocês ajam como se a casa estivesse pegando fogo, foram as palavras que ela usou para comunicar a emergência de nossa situação ao Parlamento Europeu (leia o discurso na íntegra aqui). Ainda que Greta não esteja falando a partir de qualquer referência espiritual ou religiosa, a imagem que usa de uma casa comum e a convocação que faz para a importância de valores morais e de nos conscientizarmos de nossas responsabilidades – especialmente com as gerações futuras, coincide em tudo com a visão que diferentes tradições religiosas têm usado para abordar a questão da emergência climática.  

Ações em direção ao milagre – Fé no Clima 

No Brasil, o “Fé no Clima”, é uma iniciativa que tem como missão convergir essas diferentes visões. Capitaneada pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), desde 2015 a rede congrega lideranças religiosas, pesquisadoras, pesquisadores e sujeitos da sociedade civil com o objetivo de produzir reflexões e conjugar esforços no desafio de apontar novos rumos frente à emergência climática.

emergência climática

Registro do III Encontro Fé no Clima. Fotos de Raquel Paris

Se ambientalistas em todo o mundo apostam nas manifestações e paralisações para chamar a atenção e conscientizar, o coletivo Fé no Clima aposta nas conexões espirituais de amor e cuidado que os inspiram. Pedro Strozenberg, atualmente secretário executivo do ISER, fala que a aliança com as comunidades religiosas é fundamental, pois esses são espaços de construção de saberes e confiança entre os praticantes.

“A iniciativa Fé no Clima trabalha para que as diferentes religiões possam, de forma conjunta, juntar seus saberes do mundo religioso com saberes do mundo da ciência. Então, esses conhecimentos que vem dos dois lados é a combinação, é o reconhecimento de diferentes saberes que se juntam em prol de produzir um avanço na consciência e na ação na defesa do meio ambiente, na defesa das florestas, na mudança climática”.

Conhecer para comunicar  

Profundo conhecedor do quadro atual da crise ambiental no Brasil, Antônio Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) é um dos integrantes do Fé no Clima. Com o desmatamento atingindo números recordes no ano de 2019, Nobre vai direto ao ponto:“Se eu tivesse a chance de conversar com a Greta, tenho certeza, ela iria subir ainda mais seus alarmes de pânico”. 

Não é por menos. Publicado em 2014, o relatório “O Futuro Climático da Amazônia” já trazia revelações extraordinárias que Nobre chamou dos 5 segredos da floresta. Eles desvendam como a Amazônia protege não só a si mas a todo hemisfério, atuando como uma verdadeira bomba biótica impedindo fenômenos climáticos extremos, produzindo “rios voadores’, limpando e mantendo úmido o ar e levando as chuvas continente adentro. Assim, Nobre não cansa de advertir: “Precisamos reforçar a necessidade da preservação das florestas para o enfrentamento da crise climática. A emissão dos gases de efeito estufa corresponde a 20% do aquecimento global, já o desmatamento corresponde a 60% do total, e a Amazônia é nossa grande reguladora climática”. 

Em se tratando de preservar as florestas, para os povos indígenas e praticantes de religiões de matriz africana, preservar as matas é preservar sua própria existência. Convivendo com o racismo,  a intolerância religiosa e com o fato de estarem em maior vulnerabilidade social, a crise climática bate primeiro em suas portas. “Somos nós que abraçamos as árvores, somos nós que colhemos as ervas. Nós somos os povos que guardam esses saberes há milhares de anos, que resistimos mantendo essa tradição e o que é afetado com essa crise é justamente o povo preto, pobre e favelado nesse país”, aponta Mãe Flávia Pinto, conselheira do Fé no Clima e sacerdotisa do terreiro de umbanda Casa do Perdão​. 

Para o Babalorixá Adailton Moreira encontrar soluções passa por desenvolvermos sentimento de pertencimento e retomarmos a boa ética em nossas vidas que se traduz como o cuidado com as pessoas e com o ambiente.  

“Na nossa tradição dos Orixás não há como compreender ser de orixá sem que haja uma relação de total integralidade. Então, para além de ter fé no clima, nós temos que ter pertencimento ao clima, é fundamental que nós saibamos dessa relação totalmente interdependente: sem folha, sem terra, sem água, sem vento não tem como cultivar nossas divindades. Esse sentido de integralidade e pertencimento é fundamental para que nós possamos trabalhar para uma sociedade, uma comunidade mais unida”. 

Uma crise sem inimigos

Em um mundo pegando fogo, relegar a boa ética e eleger inimigos é a saída mais fácil de um script que nos trouxe até aqui. Mas afinal, se estamos falando de casa comum, de um único navio compartilhado, ultrapassarmos nossas diferenças não é vital para que não afundemos todos? Segundo Marina Silva, ambientalista e ex-ministra do Meio Ambiente, a agenda ambiental e, principalmente, a agenda da mudança climática, é uma agenda inclusiva.

“Alguns vieram pelo coração, esses são os pioneiros. Tem outros que vieram pela razão, por entenderem que vai haver graves consequências sociais e ambientais e tem outros que não se movem nem pela razão nem pelo coração, esses são contraventores contumazes e pra esses a sociedade tem que criar mecanismos para não permitir que eles continuem fazendo da nossa casa comum as atrocidades que estão sendo feitas. Mas a agenda ambiental é uma agenda inclusiva, o problema que hoje está posto dos eventos extremos afeta todo mundo”, fala Marina.

Para o Lama Padma Samten, um dos fundadores e conselheiro do Fé no Clima, já passamos do ponto de falar da crise ambiental. “Falamos da crise como alguma coisa que pode ser arrumada. Eu acho que nós estamos vivendo uma transição daqueles que estão tentando sustentar e levar até o fim esses conjuntos de valores, eles aparentemente vão afundar calmamente no meio da  aflição dessa crise incontornável. Por outro lado, nós vemos uma vitalidade enorme surgindo, surgindo de modo totalmente espontâneo por todo lado”

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Lama Padma Samten durante a sua fala no III Encontro Fé no Clima. Foto: Raquel Paris

Em marcha

Então, qual seria nosso papel na construção de perspectivas amplas, sustentáveis e inclusivas? À nossa pergunta sobre como agir, a resposta de Kaz Sensei apontou uma vez mais que não há separação entre a busca por uma cultura de paz e um planeta sustentável: 

“Podemos nos juntar a numerosas forças mundo afora pela nossa sobrevivência, como a Extinction Rebellion (Rebelião da Extinção), no Reino Unido, e a Green New Deal (Novo Acordo Verde), nos Estados Unidos. A Costa Rica nos apresenta um modelo. Em meio a uma grande crise após seu Congresso apoiar uma eleição corrupta e uma guerra civil eclodir, ela abriu o precedente de uma sociedade sem forças militares. Ela provou que é possível construir uma nação feliz, com direitos humanos e proteção ambiental. Podemos todos seguir a Costa Rica. Podemos todos vencer.”

Ao lado de políticos, cientistas e lideranças religiosas, a fala do Lama Samten foi na mesma direção de sonho, de visão coletiva. “O ponto mais importante para nós é delinearmos um sonho que nos una e que a gente consiga andar e apontar os outros para essa direção. Nós estamos numa pressão, essa pressão precisa de um canal de saída, esse canal inclui um sonho coletivo. Eu acho super importante nosso papel de nos unirmos mas nós não vamos nos unir descrevendo nossas tradições, nós vamos nos unir quando tivermos um sonho conjunto. Nós estamos criando um outro mundo. Eu não acredito  que a gente consiga ver ainda esse outro mundo mas nós vemos a vitalidade que está construindo esse outro mundo. Ninguém duvida disso”.


Tradução da resposta de Kaz Sensei por Caroline Souza. 


Complemente sua leitura:

  • Veja como foi o II Encontro “Fé no Clima” e entenda melhor esse movimento na matéria feita por Janaína Araújo, em 2017, clicando aqui →
  • A ecofilósofa, estudiosa do budismo e da teoria geral dos sistemas, Joanna Macy, aborda o futuro do planeta e da humanidade e nos mostra que um engajamento alegre é possível no texto “Como se preparar internamente para o que quer que aconteça” →
  • Confira o discurso de Greta Thunberg no Parlamento Europeu, em que ela alerta os líderes das grandes potências sobre a crise planetária e chama-os à ação. Veja →
  • Relembre a passagem de Kaz Sensei pelo Brasil, em 2018, na nossa página de cobertura especial →  

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3 Comentários

  1. Ormando :) disse:

    “É de conhecimento geral que a agricultura deve encontrar caminhos para se afastar dos venenos. Possuímos todos os conhecimentos necessários. Milhares de agricultores orgânicos em todo o mundo são prova disto.”

    José Lutzenberger no texto “O Absurdo da Agricultura”

  2. Ormando :) disse:

    “O que para Gaia, ao longo de seus 10 bilhões de anos de expectativa de vida e com pelo menos mais 5 bilhões pela frente, poderia ser apenas uma leve e passageira febre, talvez representasse o fim da civilização para nós.

    Uma pessoa sábia talvez arrisque aprender com seus erros, mas ela certamente evitará experimentos nos quais, se derem errado, as conseqüências serão inaceitáveis e irreversíveis. Como podemos fazer os poderosos compreenderem que a Moderna Sociedade Industrial está embarcada precisamente neste tipo de experimento?”

    José Lutzenberger no texto “A Febre de Gaia”

    * publicado em inglês, na revista ambientalista britânica
    “The Ecologist”, volume 29, n°2, março/abril de 1999 – Tradução de Lilly Lutzenberger

  3. Lama Padma Samten disse:

    Muito importantes essas considerações todas, muito relevante o tema, muito bom o texto!

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