Continuamos a publicação sobre as seis perfeições por Jetsunma Tenzin Palmo
Antes da chegada da venerável Jetsunma Tenzin Palmo ao Brasil, de 29 de março a 1 de abril, em São Paulo, já estávamos preparadas para publicar nesta semana uma homenagem sobre a britânica que com menos de 20 anos de idade foi de navio para Índia em busca de seu mestre e passou cerca de 12 anos em retiro solitário numa caverna em Lahul, nos Himalaias indianos.
Mas numa espécie de magia, ao mesmo tempo que começamos a escrever, recebemos gentilmente da praticante brasileira Cristiane Cruz, que está morando na Índia e esteve no convento da Jetsunma, o Dongyu Gatsal Ling Nunnery, a tradução de ensinamentos transcritos de Tenzin Palmo sobre as Seis Perfeições (ou Seis Paramitas).
No budismo tibetano mahayana, os bodisatvas trilham o caminho da prática das seis perfeições: generosidade, ética, paciência, esforço entusiasmado, meditação e sabedoria. Essas seis práticas permitem atingir um estado livre das emoções perturbadoras e dos obstáculos e, se praticados de forma perfeita, junto com sabedoria genuína, são a chave para o surgimento da completa iluminação.
Até a chegada de Jetsunma Tenzin Palmo, estaremos publicando esta série de ensinamentos sobre as Seis Perfeições, sendo uma perfeição por semana, em uma espécie de contagem regressiva para a chegada desta grande mestra ao Brasil.
Que possamos contemplar suas palavras com atenção e que muitas pessoas sejam beneficiadas.
A quarta paramita é viriya, que significa perseverança ou esforço entusiasmado. Todos nós percebemos que, se quisermos ser habilidosos em qualquer atividade, primeiro temos de praticar. Conheci um jovem na Austrália que desde garoto adorava violão: guitarra clássica e espanhola. Mesmo como um jovem estudante, ele praticava muitas horas, diariamente, com sua guitarra. Agora, já adulto, ele é um guitarrista brilhante que vence muitas competições. O ponto é que, embora tivesse talento natural para a música e amasse o violão, ainda assim ele precisava praticar.
Se quisermos ser jogadores de futebol ou praticar qualquer tipo de esporte, nos tornarmos um dançarino, um especialista em informática ou qualquer outra coisa, precisamos praticar. Mesmo que alguém tenha talento natural, ainda assim precisa repetir os mesmos exercícios até que estes se tornam naturais. Se concordarmos com isso em relação ao domínio de uma habilidade física, por que às vezes imaginamos que, em um caminho espiritual, no qual basicamente devemos retrabalhar completamente nossa própria mente, de alguma forma, isso aconteceria de forma automática?
É como os músicos profissionais que passam anos praticando e praticando até que finalmente a música toca através deles. Mas não podemos apenas esperar que isso aconteça sem reservar um bom tempo para praticar. Quando vemos ótimos músicos tocando, parece não haver esforço envolvido, como se eles não estivessem fazendo nada e a música escorresse pelos seus dedos. Mas sabemos por quantas horas todos os dias, e por quantos anos, eles se dedicaram para que parecesse tão fácil!
Em nossa tradição Drukpa Kagyu há uma história de um iogue “louco” chamado Drukpa Kunley. Certa vez, ele foi a Lhasa e visitou o templo mais importante, chamado Jokhang. No templo, a estátua principal é uma do Buda Shakyamuni chamada Jowo Rinpoche, que representa o Buda Shakyamuni como um jovem. Então, Drukpa Kunley inclinou-se e disse ao Buda: “Ok, você e eu começamos ao mesmo tempo. Você se tornou um Buda e eu ainda estou aqui preso no samsara! Qual a diferença entre nós? A diferença é que você fez esforços, enquanto eu fui preguiçoso!”.
As pessoas reclamam que gostariam de praticar, mas não têm tempo. Esta é uma das razões pelas quais eu escolhi falar sobre as Paramitas – generosidade, disciplina, paciência, esforço, meditação e sabedoria –, porque essas virtudes do bodisatva não só constituem o caminho para a Budeidade, mas também são nossas próprias qualidades intrínsecas e precisamos desenvolvê-las em nossas vidas diárias.
Portanto, não devemos pensar que praticamos apenas quando estamos sentados em nossa almofada de meditação, quando chegamos a um Centro para ouvir os ensinamentos do Darma ou quando estamos fazendo nossos rituais; assim, o resto do nosso cotidiano é uma atividade mundana. Porque, se fizermos essa distinção, o tempo que dedicamos ao Darma se torna muito pequeno em comparação com o tempo em que somos atraídos pelas distrações mundanas.
Mas, se entendermos o Darma como um fermento, então misturaremos esse fermento com a massa pesada de nossa vida cotidiana, e ela crescerá. Assim, toda essa massa se tornará leve e nutritiva. Em vez de ser um grande caroço indigesto, a massa cresce e nós a cozinhamos; fica delicioso! Isso é muito importante. Tudo o que fazemos, se o fizermos com consciência e bondade, se realmente usarmos todas as nossas experiências como uma oportunidade para implementar os vários princípios do Darma que ouvimos e lemos, se realmente usarmos nossa vida diária como uma prática, então, tudo se transforma.
Não importa quantos grandes Lamas nós conhecemos, quantos ensinamentos maravilhosos ouvimos, quanta inspiração obtemos dos outros, no final, a transformação depende de nós mesmos, do que fazemos com nossas vidas, do que fazemos com nossa própria mente.
Portanto, essa questão de esforço e perseverança não significa um tipo de peso ofegante que nos oprime. Não é uma obstinada falta de alegria. Quando fazemos algo que realmente amamos, isso não parece difícil. Parece fácil porque temos muita alegria em fazê-lo. O Darma deve ser causa de alegria. É como qualquer atividade: se nós realmente gostamos de fazê-la, então, apesar de dedicarmos tanto tempo e energia,a atividade não nos cansa.
E, assim, se vemos tudo em nossas vidas – nossa vida familiar, nosso tempo com os amigos, colegas e a sociedade em geral – como nossa prática de Darma, e tudo o que nos acontece como oportunidade de aprender e nos desenvolver, então, o que parecia ser consideravelmente maçante, chato e sem sentido se transforma em algo profundo e significativo!
Nossas vidas podem ter significado para nós. É muito importante perceber que este nascimento humano é nossa grande oportunidade e que provavelmente não teremos outra chance se a desperdiçarmos agora. Esta é a abertura. Nenhum grande mestre simplesmente estalará os dedos e nós realizaremos os ensinamentos. Não funciona assim. Mesmo que tenhamos a sorte de experimentar um vislumbre do verdadeiro estado da natureza primordial, ainda assim precisamos de muito tempo e prática para estabilizar esse entendimento. Mesmo que o Buda em pessoa estivesse sentado à nossa frente, tudo o que ele poderia dizer seria: “Pratique”.
Muitos discípulos de Buda eram pessoas comuns – não eram todos monges e monjas. Eram reis, empresários, agricultores e donas de casa. Na verdade, é notável, se lermos os primeiros Sutras, percebermos quanto tempo o Buda realmente passou andando em torno das cidades, conversando com pessoas comuns e incentivando-as a transformar suas vidas. Elas não se tornaram monges. Elas apenas usaram os ensinamentos em suas vidas diárias e atingiram níveis muito elevados de realização.
Então, se usarmos nossas vidas cotidianas como nossa prática espiritual, as coisas definitivamente mudarão. Assim, nossos maiores problemas se tornarão nossas melhores oportunidades.
Transcrição do original em inglês disponível em Gatsal teaching →
Agradecimento especial ao Lama Jigme Lhawang e à sanga Drukpa Brasil pela colaboração na publicação desse texto.
Confira também textos com os ensinamentos das outras perfeições já publicados. Ir para a lista →
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2 Comentários
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Lindo texto! Obrigado por compartilhar!
Quando analisamos o caminho espiritual da prática, vemos que a prática é o caminho espiritual… Mas, ainda assim percebemos, muito longe do Abençoado.
Como um cão atrás da roda…
Seja através dos textos, dos sons ou do olho, que todos os seres possam alcançar a verdadeira liberação!